Vicissitudes da natureza humana

Mais de duas mil crianças sofreram abusos sexuais em mais de 250 orfanatos e centros educativos católicos na Irlanda, ao longo de sessenta anos, segundo as conclusões do relatório da Comissão de Inquérito sobre Abusos Infantis, que está a chocar o país, e que demorou nove anos a produzir 2600 páginas.

Estão documentados casos de punições excessivas, agressões, humilhações e violações, fome, abusos físicos e emocionais, num clima de medo em escolas religiosas por onde passaram cerca de 30 mil crianças (especialmente rapazes), sem que o Ministério da Educação tivesse protegido devidamente os menores, apesar dos alertas de inspectores que falavam em crianças com ossos partidos ou com sinais de passar fome. Um exemplo: a uma das crianças internadas, Sadie O´Meara, que agora é septuagenário, nunca lhe disseram que a mãe tinha morrido, o que só veio a saber quando saiu da instituição, já tinham passado quatro anos.

A igreja irlandesa pediu desculpa, mas a Santa Sé permanece em silêncio, face a um caso desta gravidade, apesar de se saber, de acordo com as conclusões do inquérito, que: “as autoridades religiosas sabiam que os abusos sexuais eram um problema constante nas instituições masculinas”.

De forma curiosa e até hipócrita, o governo irlandês só aceitou compensar as vítimas se estas prescindissem de processar o Estado e a Igreja, pelo que cerca de 12 mil pessoas foram já indemnizadas. Ou seja, o Estado logo em 2002 procurou garantir a imunidade aos suspeitos dos abusos a troco de dinheiro e propriedades. Deste modo evita-se a revelação dos nomes daqueles que cometeram violência corporal e abusos sexuais sobre milhares de crianças entregues a estas instituições geridas por religiosos.

Perante estas notícias chocantes, que se têm vindo a repetir um pouco por todo o mundo, para descrédito das instituições religiosas, o mais incrível é que parece ainda não ter havido a coragem de enfrentar a realidade. Isto é, entender de vez que os sacerdotes (e todos os outros ministros religiosos) não são Deus nem são anjos. São pessoas normais de carne e osso, sujeitas às mesmas paixões, aos mesmos impulsos carnais, às mesmas alterações e dinâmicas hormonais, à mesma influência mediática global que tende, de forma desequilibrada, no sentido da sensualidade, e às mesmas dificuldades emocionais e mentais das outras pessoas.

Pode-se questionar a vocação religiosa dos elementos do clero que protagonizam estes escândalos, pode-se reflectir sobre a solidez da sua formação, pode-se repensar o seu modo de recrutamento, pode-se discutir o sistema de funcionamento das instituições religiosas, mas o que não se pode é fingir que não são homens completos ou que não enfrentam necessidades sexuais, com as quais lidam melhor ou pior.

Não sou ingénuo ao ponto de acreditar que a transformação do celibato obrigatório em facultativo, defendido já por muitas vozes altamente qualificadas da igreja romana, seja o suficiente para resolver este tipo de problemas. Mas que ajudaria muito não tenhamos dúvidas. E sobretudo possibilitar-se-ia aos sacerdotes católicos a hipótese de viverem a sua humanidade de forma muito mais livre, autêntica e coerente.

Afinal, Jesus Cristo nunca fez voto celibatário nem o exigiu aos seus discípulos.

Fonte: Brissos Lino, Setúbal na Rede, 23/06/09.

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