Equívocos indenominacionais

Vivi grande parte da minha vida numa denominação evangélica em Portugal, desde a mais tenra infância. Primeiro como crente comum, depois como membro activo da igreja, que sempre fui, e finalmente como ministro do Evangelho, durante vários anos, tendo desempenhado cargos de elevada responsabilidade nas suas estruturas. Conheço, portanto, os aspectos mais constrangedores e controversos do denominacionalismo evangélico português.
Acresce que a minha experiência em lidar com outras denominações, no âmbito de responsabilidades que fui assumindo no meio cristão, ao longo dos anos, permite-me ter hoje uma perspectiva geral das coisas.

Mas a maior parte do meu ministério pastoral, de quase um quarto de século, tem sido passada numa igreja independente, mas de origem denominacional. A presente reflexão evidencia sobretudo alguns equívocos, erros ou fraquezas, consoante o ponto de vista, do percurso histórico das chamadas igrejas ou ministérios independentes, e vem na sequência de outro texto que escrevi, recentemente, sobre aquilo a que chamei os “Equívocos Denominacionais”. Deste modo, completa-se assim uma espécie de perspectiva geral nesta matéria. Eis alguns deles:

1.    Falta de coerência e estrutura doutrinárias. A tarefa de construção teológica requer um elemento essencial que não se fabrica nem compra ou vende. Chama-se tempo. É necessário tempo para reflexão, estudo, comparação, questionamento, interiorização.
Não é por acaso que a Igreja Primitiva tinha menos de meia dúzia de pilares doutrinários, a saber, a identidade messiânica de Cristo, a sua ressurreição corporal, e a convicção da sua segunda vinda. Tudo o resto estava em aberto. Entre os séculos IV e VIII discutiu-se o mistério da identidade de Cristo, isto é, a doutrina de que ele era perfeitamente Deus e perfeitamente Homem, conciliando assim ambas as naturezas. Foram necessários cerca de quatro séculos para estabelecer uma das bases mais importantes da fé cristã.
Grande parte das igrejas independentes é muito recente e, caso não tenham saído de uma denominação histórica, e portanto recebido de herança todo um património teológico que preservem, estão como um barco sem leme no mar alto, num mundo de crescente confusão religiosa.

2.    Primado da mediocridade. Um ministério isolado cai facilmente na mediocridade. Um bom exemplo é a designação de alguns ministérios independentes, que chega a ser ridícula ou vulgar. Há nomes de igrejas de bradar aos céus. Deixo apenas um, como amostra: Associação Evangélica Fiel Até Debaixo D’água (Brasil)…
Se a rigidez não é criativa, nem inovadora nem adaptativa, a liberdade irresponsável, preguiçosa e pouco lúcida também não é melhor.

3.    Mimetismo. Uma boa parte dos pastores de igrejas independentes não dispõe de estrutura própria, pessoal e ministerial, para desenvolver um trabalho espiritual sem o apoio do contexto de uma denominação. Falta-lhes sentido crítico, exigência e auto-disciplina, capacidade de renovação permanente, competências em matéria de sensibilidade espiritual e de estabelecimento de um corpo próprio de doutrina.
Como resultado disso gastam a vida a imitar o que outros ministérios fazem, e a importar modelos estrangeiros, correndo o risco evidente de passar ao lado dos desígnios de Deus para aquela comunidade específica, naquele tempo concreto.
Embora Deus se mova hoje essencialmente através de relacionamentos e não tanto das estruturas denominacionais, a verdade é que uma liderança a la carte não augura um futuro risonho.

4. Isolamento. É verdade que há muito líderes efectivamente isolados ou com a sensação de isolamento nas denominações, mas a verdade é que quando se está mesmo sozinho, do ponto de vista organizacional, os perigos decorrentes do isolamento são muitíssimo maiores.

5. Auto-deslumbramento. O perigo de acharmos que somos os maiores, por falta de termo de comparação, é uma perigosa realidade, da qual a História nos fornece abundantes e tristes exemplos.

6. Falta de prestação de contas. No reino de Deus todos devem prestar contas a alguém, e quando isso não sucede está aberta a porta para toda a sorte de abusos. Quando os ministérios independentes não estão devidamente estruturados, ou seja, quando não estão organizados de forma a salvaguardar este princípio sagrado, tudo pode acontecer.
No reino de Deus não pode haver homens ou mulheres que apenas prestam contas a si próprios, pois tal prática, além de não ser bíblica nem saudável, é altamente perigosa, por razões óbvias.

7. Empobrecimento “genético”. A falta de interacção e partilha com a diversidade do Corpo de Cristo empobrece o pedigree da igreja local. (Note-se que este pode ser igualmente um perigo de algumas igrejas enquadradas nas denominações.)

8. Ausência do princípio dos vasos comunicantes. Quando um ministério permanece isolado, não sofre apenas o empobrecimento que resulta da ausência de comunhão, corre também o risco de passar ao lado da forma como Deus se está a mover no mundo, e de uma revelação renovada.

9. Falta de massa crítica. A reduzida dimensão de uma realidade eclesial determina a falta de massa crítica, isto é, do surgimento de diferentes propostas, métodos e perspectivas sobre um mesmo problema ou tarefa, já que, como disse Salomão, na multidão dos conselheiros há segurança (Provérbios 11:14) e vitória (24:6).

10. Falta de pastorais específicas. Num ministério independente, as respostas às diversas necessidades das diferentes faixas etárias pode ficar comprometida, em meios mais pequenos e com menos recursos, humanos e outros.

11. Dificuldade acrescida na formação de lideranças. Não havendo escolas de formação teológica independentes a que recorrer, a tendência é não investir na formação. A factura paga-se a prazo.

12. Monarquismo. A tentação de “passar o poder” dos pais para os filhos tende a ser mais comum nas igrejas independentes, num rito de tipo quase monárquico. Quem levanta é o Espírito Santo, mas é a igreja local que reconhece os dons de ministério. A tentação monarquista é mais presente nas igrejas independentes, por razões práticas. Um filho pode vir a suceder ao seu pai, mas só se for essa a orientação do Espírito Santo e o sentimento da comunidade local de fé.

13. Confusão entre autonomia e independência. Temos usado neste texto o termo “independente” por comodidade e por ser um termo corrente, mas seria mais correcto utilizar a designação “igrejas e ministérios autónomos”. De facto, no reino de Deus não há “independência”. Todos fazermos parte de um só Corpo. Quando se perde esta noção, e parafraseando o apóstolo Paulo, é como se um membro dissesse ao restante corpo “não preciso de ti!” Ou seja, um verdadeiro disparate.

14. Impacto regional e nacional limitado. Para produzir impacte na região onde está implantado, o ministério independente tem que ter uma determinada dimensão e dispor de suficientes recursos de diverso tipo. Caso contrário, o mais certo é passar despercebido e tornar-se inócuo no meio em que se encontra, isto é, não passa de uma espécie de clube fechado.

15. Falta de apoio (disciplinar) externo em caso de necessidade interna. Embora o sistema de resolução de conflitos nas denominações deixe muito a desejar, em boa parte dos casos, a verdade é que se um ministério independente não tem a quem recorrer, num momento de dificuldade deste género, já está em perda.

Graças a Deus por todas as igrejas ou ministérios independentes que proclamam o reino de Deus com paixão, eficácia e fidelidade a Cristo e Sua Palavra.
Graças a Deus por todas as igrejas denominacionais que também o fazem. Será bom termos presente que a organização da igreja, local, regional, nacional ou mundial é um assunto humano e não divino. A Bíblia fornece um modelo espiritual para a Igreja, mas não qualquer figurino sistémico, do ponto de vista organizativo.
Por si só, e atendendo à sua organização, nem as igrejas denominacionais são melhores do que as independentes nem o contrário. Ambas têm os seus perigos, vantagens e inconvenientes.
Mas o seu sucesso espiritual depende da sua visão, e do que fazem com aquilo que são, que têm e do contexto em que se enquadram.

4 thoughts on “Equívocos indenominacionais

  1. Parabéns, Brissos.
    Todo o artigo está dentro da verdade, da cooerência, sem acusações ou dedos apontados… Gostei sobretudo do parágrafo:”Será bom termos presente que a organização da igreja, local, regional, nacional ou mundial é um assunto humano e não divino. A Bíblia fornece um modelo espiritual para a Igreja, mas não qualquer figurino sistémico, do ponto de vista organizativo.” Tudo seria muito mais simples, sem tantas “ondas” se o compreendessemos.

  2. É verdade. Creio que por vezes falta uma visão isenta e desapaixonada destas coisas, e uma redefinição não-preconceituosa de conceitos.
    Bjs

    bl

  3. Caro Brissos
    Faz tempo que, embora visitando e lendo, não faço comentários.
    Hoje quero-te dizer que agradeço bastante este texto, que me ajudou a entender melhor mais algumas coisas.
    Hélder S.

Deixe um comentário