Rótulos

Os “ismos” estão na moda, por todo o lado, desde a política à religião.

Ao longo da história do Cristianismo as designações específicas de grupos de cristãos fizeram escola. Tornaram-se uma espécie de bandeira ou marca distintiva de cada um desses grupos em relação a outros.

O Novo Testamento revela-nos que os primitivos discípulos de Jesus Cristo, confundidos com uma seita judaica, foram denominados “os do caminho” até que, em Antioquia, receberam pela primeira vez o rótulo de cristãos (Actos dos Apóstolos, 11:26). Desde aí foram-se acumulando milhentas designações, denominações, ramos ou sensibilidades que desembocam numa perfeita confusão passados vinte séculos de história.

Baseados numa noção universalista (católicos), numa ortodoxia doutrinária (ortodoxos), no nome de um fundador (luteranos), de um processo histórico (reformados), de uma forma de governo eclesial (presbiterianos), de um rito religioso (anabaptistas), de uma praxis (puritanos), de um nacionalismo (anglicanos), de uma doutrina (pentecostais), de um processo político (episcopais), ou até de uma recusa em admitir designação específica (irmãos), os cristãos foram levantando muros entre eles que os fizeram tornar-se escândalo para o mundo.
Segundo Walter Waltmann, do Conselho Mundial de Igrejas (WCC), existem hoje “mais de 38 mil tipos de denominações cristãs diferentes, entre católicos, ortodoxos, anglicanos, metodistas, luteranos, baptistas, presbiterianos, pentecostais e neopentecostais” entre outros (1).

Nos primeiros séculos da era cristã, e perante a arremetida de múltiplas heresias, provenientes de diversos sectores religiosos e filosóficos, a Igreja procurou passar ao papel as bases fundamentais da sua fé, e assim nasceram os credos. Foi pela mesma razão que a Igreja se organizou, através dos concílios e da instituição da hierarquia eclesiástica, de modo a resistir também ao perigo latente de desagregação, provocado pelas perseguições e pelo seu crescimento exponencial.

Mas aquilo que se fez com a intenção inicial de assegurar a sua preservação, acabou por se transformar, por via do exagero (de resto, à semelhança do que fizeram os judeus com a lei de Moisés, a Misdrash e o Talmude), em excesso de valorização da letra e défice de atenção prestada ao espírito.

Ao longo dos séculos, os dogmas e declarações de fé foram construindo a base identitária das igrejas e denominações cristãs, mas também cavando fossos entre elas, baseados nas marcas distintivas de cada uma e na sua diferenciação, ao arrepio do clamor de Jesus na chamada oração sacerdotal (S. João, 17).

Mas o que significam hoje os rótulos, num tempo em que até as ideologias foram substituídas pelo pragmatismo, ainda que não tenhamos chegado ao fim da História, ao contrário do que sugeria Fukuyama em finais do século passado (2)? Muito pouco.

As denominações em geral nasceram de processos históricos, resultantes da dialéctica entre uma ênfase na igreja institucionalizada e a uma ênfase na espiritualidade pessoal, de acordo com o efeito de pêndulo, tendo pelo meio diversas influências e poderosos interesses políticos, dos quais resultaram guerras fratricidas e rivalidades que ainda hoje permanecem, embora mitigadas.

Mesmo dentro das grandes igrejas e denominações se pode observar o mesmo sectarismo e tentação de luta pelo poder entre grupos, pelo que o problema não reside propriamente nessas estruturas, que têm a sua razão de ser. Está antes na natureza humana, no quase inevitável sectarismo denominacional (interno e externo), em especial quando os líderes religiosos são indivíduos retrógrados, de espírito fechado, mais preocupados com a segurança pessoal da sua carreira do que com o seu múnus pastoral.

A verdade é que Jesus Cristo não fundou qualquer denominação ou igreja particular. Fundou a Igreja, a Sua Igreja (S. Mateus 16:18).
É por isso mesmo que, quanto a mim, o único rótulo de que não estou disposto a prescindir é o de cristão. Tudo o resto é circunstancial e secundário.
É em Jesus Cristo que o ser humano se deve inspirar completamente, pois só Ele é o nosso modelo e exemplo.

E Cristo não é propriedade de ninguém, nem pessoa, nem organização.

(1) http://www.revistaenfoque.com.br/index.php?edicao=84&materia=1103
(2) Fukuyama, Francis, “O Fim da História e o Último Homem”, Ed. Círculo de Leitores, Lisboa, 1992.

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