Aprender a dizer amor

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Jorge Jesus, treinador do Flamengo, o mais falado clube nos últimos dias, afirmou: “no Brasil aprendi a dizer amor… Em Portugal é uma complicação para dizer amor. Quero desfrutar desse amor”. Sim, mas porque será tão difícil aos portugueses dizê-lo?

Na cultura anglo-saxónica, por exemplo, é corrente dizer “amo-te!” no final dum telefonema vulgar para um namorado, marido ou filho. Entre nós isso é considerado estranho ou uma lamechice. Mas o poeta não tem tais pruridos: “Diz o meu nome/pronuncia-o/como se as sílabas te queimassem/os lábios” (Mia Couto).

Porque é mais fácil dizer na cara de alguém que não se gosta dela do que dizer que gostamos da pessoa? Talvez porque no primeiro caso, logo que o dizemos ficamos preparados para uma reacção negativa, a fim de não nos deixarmos magoar. Se a pessoa disser “Pois eu também não gosto de ti!”, já estamos resguardados. Mas se eu disser à pessoa que a amo estou a expor-me. E se ela responder que o sentimento não é recíproco, que não quer saber de mim para nada, então vou ficar magoado pois estou com as defesas em baixo.

Muita gente confunde os afectos com a expressão dos mesmos. Muitos têm afectos para com familiares e amigos, mas não os sabem expressar. O facto é que os filhos tendem a reproduzir os modelos de comportamento dos pais. Se uma criança nunca viu o pai acariciar a mãe ou dizer-lhe palavras afectuosas, quando crescer dificilmente o fará à sua companheira ou companheiro, mesmo que lhe tenha muito amor. Muitos até confundem expressão de afectos aos filhos pequenos com o acto de lhes dar presentes, quando não com o suprimento das suas necessidades básicas, esquecendo que dar de comer, vestir e calçar não passa do dever intrínseco dos pais para com as crianças que trazem a este mundo.

O facto é que ainda se ouve falar de famílias que no Portugal de há muitas décadas cresceram em lares com défice de afecto e até de comunicação. No tempo dos nossos avós era vulgar que os filhos se sentassem em silêncio para jantar, só falavam quando lhes perguntavam alguma coisa e nem pensar em levantar da mesa sem pedir licença ao patriarca.

Mas creio que a situação se deve sobretudo a uma cultura marialva, em qualquer caso muito machista, que ainda não fomos capazes de ultrapassar e que considera a expressão dos afectos como coisa feminina ou pouco viril. Assim, torna-se mais fácil agredir física ou verbalmente do que acariciar.

Jorge Jesus disse que tinha “aprendido” a dizer amor. Exprimir verbalmente o amor que se tem é uma competência inata, aprende-se. Nas crianças é algo que funciona por modelagem, elas reproduzem o modelo parental. É por isso que as crianças que crescem em ambientes de violência doméstica acabam por tornar-se agressores quando adultos, desenvolvendo um interminável ciclo de maldição.

O discurso de Jesus Cristo e os escritos apostólicos neotestamentários estão repletos de uma mensagem de amor. Esse mote vai desde o Sermão do Monte às cartas de João Evangelista. Agora que se aproxima a época natalícia, talvez seja bom recordar o que escreveu o profeta Isaías setecentos anos antes de Cristo: “Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu, e o principado está sobre os seus ombros, e se chamará o seu nome: Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz” (Isaías 9:6).

Estas caracterizações do Messias esperado pelo Antigo Israel não compaginavam com o varão de guerra Iavé a que os hebreus estavam habituados, na linha dum Deus étnico, à semelhança das divindades dos povos seus contemporâneos, embora com a característica singular do monoteísmo. Não. Qualquer dos cinco títulos referenciados remete para um Deus de proximidade e de paz. E porquê “Deus forte”? Só pode ser pela mesma razão que o apóstolo João nos adianta a essência divina: “Deus é amor” (1 João 4:16b). Ou seja, Deus é amor porque o amor é a força mais poderosa do universo. Já o rei Salomão o sabia: “o amor é forte como a morte” (Cântico dos Cânticos 8:6c).

Mas talvez possamos aprender a dizer amo-te com Joaquim Pessoa: “Amo-te porque quero amar-te e porque tenho necessidade de te amar e porque amar-te é uma aventura. Amo-te porque sim mas também porque não e, quem sabe, porque talvez. E por todas as razões que sei e pelas que não sei e por aquelas que nunca virei a conhecer. E porque te conheço e porque me conheço. E porque te adivinho. Estas são todas as razões. Mas há mais uma: porque não pode existir outra como tu” (Ano Comum).

Afinal, talvez seja tão difícil dizer amor apenas porque não o conseguimos compreender.

José Brissos-Lino
JOSÉ BRISSOS-LINO
Fonte: VISÃO online, 4/12/19

Jornalixo

Falhámos-te, Salvador, desculpa-nos 

Chamemos-lhe jornalismo “criativo”, em vez de fake news ou jornalismo de fabricação, tablóide ou mesmo de sofreguidão. Independentemente da nomeação, é coisa que não nos interessa. De todo.

Recentemente sucederam dois episódios dignos de antologia. O primeiro tem a ver com o trabalho que uma estação de televisão fez com o caso das crianças supostamente roubadas à mãe dum infantário da IURD, há uns bons anos.

Esse canal generalista cavalgou a temática até à exaustão com programas longos em hora nobre e em dias seguidos, qual telenovela. Incluiu debates com comentadores, juristas, magistrados, técnicas de serviço social e jornalistas entre pessoas de outras profissões e ocupações. Para criar maior dramaticidade apresentou, por detrás dum biombo translúcido, uma mulher a quem os filhos terão supostamente sido roubados, a fim de não poder ser identificada.

A ideia que se passou ao público foi de que teria havido um conluio entre diversos responsáveis públicos, ou pelo menos negligência grosseira, de modo a lesar aquela pobre mulher e a beneficiar a família do líder neopentecostal daquele grupo religioso de origem brasileira.

Levada à justiça, a mãe das duas crianças que foram adoptadas por elementos da IURD, admitiu agora perante a juíza de instrução criminal que mentiu quando falou em “roubo” dos filhos e na sua assinatura putativamente falsificada num documento, assumindo ser “falso que alguma vez a IURD ou qualquer pessoa com ela relacionada tenha roubado os seus filhos”. Pelo contrário, declarou em documento escrito estar grata pelos bons cuidados e carinho com que a instituição e os pais adoptivos trataram os seus filhos.

A mulher juntou ao documento entregue ao tribunal um pedido de desculpas, garantindo que nunca pretendeu ofender o bom nome e prestígio da instituição, acrescentando que foi manipulada pela responsável pelo programa “O Segredo dos deuses” para confirmar ao público uma história falsa e sensacionalista criada por aquela jornalista “em nome das audiências”.

O segundo episódio é mais recente e relaciona-se com o episódio do bebé encontrado no lixo em Lisboa. Se o primeiro caso terá sido fabricado de forma inescrupulosa pela comunicação social, aqui trata-se de um exemplo de “precipitação”, como lhe chama o “Público”.

O bebé deixado pela mãe no ecoponto em Santa Apolónia não foi resgatado apenas pelo sem-abrigo que ficou com esses louros em exclusivo, mas também por outros dois homens que vivem na rua como ele. Até Marcelo Rebelo de Sousa agiu sem dispor de informação exacta sobre o que tinha acontecido e correu a encontrar-se com o “herói”, com as televisões atrás, tendo daí surgido até a promessa de uma casa para ele. Ou seja, o presidente deu um passo em falso, no afã de ser mais rápido do que o vento a intervir em público. Confrontado com o facto, chutou para canto como era de esperar.

O imediatismo da informação comporta riscos elevados, mas a comunicação social assume-os cada vez mais em nome duma luta corpo a corpo com as redes sociais. O jornalismo cede assim o seu valor mais precioso – a confirmação dos factos e o espaço para o contraditório – de modo a não chegar tarde ao público. Abandona igualmente a sua vocação única, de fazer a mediação entre os acontecimentos e os consumidores da informação, tornando-se uma caixa-de-ressonância semelhante aos que debitam num teclado de computador tudo quanto sabem ou julgam saber, o que ouvem ou julgam ouvir e o que vêem ou julgam ver, sem preocupações de rigor.

Felisbela Lopes diz que o “jornalismo assenta cada vez mais no imediatismo e das fontes de informação que de uma forma apressada fazem julgamentos lineares sobre factos complexos”. Basta ler as caixas de comentários dos jornais online para perceber que há gente capaz de dizer tudo, quase sempre escondendo-se atrás do anonimato.

Ambos os casos são preocupantes enquanto sintomas. Se no primeiro parece ter havido toda uma fabricação (falsificação) dos factos com vista a produzir um determinado efeito nos telespectadores, o que é gravíssimo, no segundo trata-se essencialmente de precipitação e uma falta de verdadeira prática jornalística, que terá levado ao engano o país e até a presidência da república.

Numa das suas viagens missionárias o apóstolo Paulo e o companheiro Silas deslocaram-se a Bereia e anunciaram o evangelho na sinagoga dos judeus: “Ora, estes foram mais nobres do que os que estavam em Tessalónica, de bom grado receberam a palavra, examinando cada dia nas Escrituras se estas coisas eram assim. De sorte que creram muitos deles, e também mulheres gregas da classe nobre, e não poucos homens” (Actos 17:11-12). Acontece que os tessalonicenses rejeitaram prontamente a “boa nova”, mas os bereanos confirmaram-na ao conferi-la com a lei e os profetas (textos do Antigo Testamento). Hoje é ao contrário, acredita-se logo em tudo e não se verifica nada. Por isso estamos como estamos.

José Brissos-Lino
JOSÉ BRISSOS-LINO
Fonte: VISÃO online, 27/11/19

O Carter que dá cartas

The Washington Post

 

Jimmy Carter foi presidente dos Estados Unidos entre 1977 e 1981 mas é um caso à parte na política americana. Cristão convicto e comprometido, nunca utilizou a fé para fazer política, ao contrário do que é corrente nos Estados Unidos, onde a Modernidade chegou pela mão da religião, ao contrário da Europa que escolheu a via do secularismo

O homem tem quase cem anos mas ainda surpreende positivamente pela lucidez, coragem e coerência. Depois de mais de seis décadas de ligação à Convenção Batista do Sul dos Estados Unidos, tendo desempenhado cargos como diácono e professor de escola dominical, rompeu com a denominação religiosa devido à política discriminatória e misógina dos líderes religiosos.

Carter diz que foi uma decisão dolorosa e difícil mas inevitável “quando os líderes da Convenção, citando alguns versículos bíblicos cuidadosamente selecionados e reivindicando que Eva foi criada só depois de Adão e foi responsável pelo pecado original, determinaram que mulheres precisam ser ‘submissas’ a seus maridos e proibidas de servir como diaconisas, pastoras ou capelãs no serviço militar.” Carter recusa-se a aceitar a visão de que as mulheres são de algum modo inferiores aos homens e considera-a uma desculpa para negar às mulheres direitos iguais em todo o mundo, durante séculos a fio, seja qual for a cultura, crença ou religião.

Em carta aberta “Perdendo a minha religião em troca da igualdade”, Carter afirma que “a crença de que mulheres precisam de estar subjugadas aos desejos dos homens legitima escravatura, violência, prostituição forçada, mutilação genital e leis nacionais que não reconhecem a violação como crime.” Além disso também custa a milhões de meninas e mulheres o controlo sobre o seu corpo e a sua vida, e continua a negar-lhes acesso justo à educação, à saúde, ao emprego e à influência dentro das comunidades onde vivem. Essas crenças religiosas “ajudam a explicar por que em muitos países os rapazes têm precedência na educação sobre as meninas, ou porque as jovens não podem escolher com quem casar, e porque muitas enfrentam elevado risco na gravidez e no parto, o que é inaceitável, uma vez que as suas necessidades básicas de saúde não são atendidas. A questão é que os textos bíblicos cuidadosamente selecionados para procurar justificar a superioridade masculina são datados, intrinsecamente ligados a culturas de matriz patriarcal, e revelam mais a determinação dos homens marcarem a sua influência e superioridade do que manifestam verdades eternas. Aliás, podemos encontrar igualmente textos bíblicos que suportam a escravatura e a aceitação tímida de governantes déspotas. Apesar de tudo as mesmas Escrituras reverenciam mulheres como líderes eminentes. Na Igreja antiga elas serviam como diaconisas, apóstolas, mestres e profetas. Só no séc. IV os líderes dominantes cristãos, todos homens, resolveram distorcer as Escrituras para perpetuar posições ascendentes na hierarquia religiosa e fechar o caminho às mulheres.

Mas Carter utiliza um argumento surpreendente para apoiar a sua posição nesta matéria. Ele diz que o machismo prejudica toda a sociedade, inclusivamente os homens. “Uma mulher instruída tem filhos mais saudáveis e é mais propensa a enviá-los à escola. Tem rendimentos mais elevados e investe o que ganha na sua família”, pelo que “é profundamente prejudicial a qualquer comunidade discriminar metade de sua população.”

Em seu entender a discriminação, perseguição e abuso de mulheres no mundo não constitui apenas uma clara violação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas também dos ensinamentos de Jesus Cristo, do Apóstolo Paulo, de Moisés e dos profetas, de Maomé, e dos fundadores de outras grandes religiões, as quais têm pugnado por um tratamento apropriado e equitativo a todos os filhos e filhas de Deus.

Carter, que já sobreviveu a um cancro no cérebro e a outro no fígado, ouviu os médicos informarem-no há quatro anos que as células tumorais se tinham espalhado para o cérebro. Percebeu então que se sentia “absoluta e completamente à vontade com a morte. Como é natural, assumi que morreria muito rapidamente e obviamente orei. Não pedi a Deus que me deixasse viver mas pedi-lhe que me desse uma atitude adequada em relação à morte”.

Aos 95 anos de idade e hospitalizado há dias, este homem tornou-se há muito um exemplo inspirador. Foi um cristão praticante toda a vida, diácono e professor de Bíblia durante muitos anos, recebeu o Nobel da Paz em 2002, pelos seus “esforços infatigáveis” a favor da resolução pacífica de conflitos no mundo, e dedicou anos da sua vida à construção de casas para pobres, no Canadá e Estados Unidos, como voluntário na iniciativa Habitat for Humanity.

Carter reafirma ainda hoje que a fé continua a ser para ele uma fonte de vigor e conforto, como o são as crenças religiosas para centenas de milhões de pessoas em todo o mundo. Mas o que é notável no mais idoso ex-Presidente dos EUA é o seu inconformismo, apesar da idade. Quando muitos se acomodam ao establishment, ele resolve levantar a voz em nome das suas convicções, pois diz que já não precisa de se preocupar em ganhar votos ou evitar controvérsias e está profundamente comprometido em desafiar a injustiça onde quer que a veja.

José Brissos-Lino
JOSÉ BRISSOS-LINO
Fonte:VISÃO online, 20/11/19

 

A morte não se pensa

Bruno Guerreiro

 

 

Em recente investigação desenvolvida por cientistas israelitas descobriu-se que o cérebro humano evita pensar na morte devido a um mecanismo de defesa que se desconhecia. 

Todos os seres humanos adultos e plenamente conscientes sabem que a morte é inevitável – é apenas uma questão de tempo e oportunidade – e têm memória dos antepassados que já partiram, assim como a notícia dos seus conhecidos que todos os dias morrem de velhice ou doença, e dos que se finam em acidentes de viação ou na guerra. Mas poucos são aqueles que não desenvolvem estratégias emocionais para evitar pensar nela. Talvez porque, como dizia Publilius Syrus no séc. I a.C., “o medo da morte é mais cruel do que a própria morte” (“Sentenças”). Pascal dizia mesmo que “é mais fácil suportar a morte sem pensar nela, do que suportar o pensamento da morte sem morrer” (“Pensamentos, 1670), razão pela qual a pena de morte é uma dupla pena, desumana, indigna e injusta.

O estudo, citado pelo The Guardian, e que foi realizado por investigadores da Universidade de Bar Ilan, em Israel, concluiu que o cérebro humano tem um mecanismo de defesa com a função de nos proteger do medo existencial da morte. Parece que esse mecanismo procura aliviar-nos deste tipo de pensamento, levando à sensação de que a morte é uma circunstância funesta mais associada a outras pessoas, como explicou o responsável pelo estudo, Yair Dor-Ziderman: “O nosso cérebro não aceita que pensemos na morte associada a nós. Temos esse mecanismo primordial que significa que, quando o cérebro obtém informações associadas à morte, algo nos diz que não devemos acreditar”.

A investigação foi realizada com um grupo de voluntários que autorizaram a monitorização da sua actividade cerebral face à audição de palavras relacionadas com a morte, como funeral ou enterro. Entende-se assim que a função do cérebro que nos protege de pensar sobre a nossa própria morte pretende permitir-nos viver livremente o presente.

Embora saibamos racionalmente que vamos morrer um dia, tendemos a projectar essa probabilidade nos outros, de modo indistinto, talvez porque a sociedade seja hoje mais fóbica em relação à morte e, como consequência, talvez as pessoas também saibam menos sobre o fim da vida e receiem mais esse episódio.

Quando começamos a pensar muito no futuro corremos o risco de perceber que a morte toca a todos, incluindo também a nós, e que, independentemente da nossa idade, podemos morrer a qualquer momento, mesmo de forma inesperada, sem capacidade de fazer qualquer coisa para o impedir. No entanto é da natureza do nosso organismo biológico lutar sempre pela sobrevivência.

Em comentário às conclusões deste estudo, pedido pelo jornal britânico, o psicólogo Arnaud Wisman, da Universidade de Kent, afirmou que os indivíduos levantam inúmeras defesas para evitar ou afastar os pensamentos ligados à probabilidade da sua morte. Trata-se duma cultura comportamental das sociedades modernas, uma espécie de fuga, que os leva a ocupações e distracções com compras e redes sociais, entre muitas outras, de modo a não pensarem nem se preocuparem com a morte.

Talvez a dificuldade em pensar na morte esteja associada à mesma razão porque se diz que a natureza tem horror ao vazio. Escrevendo sobre a iminência da sua morte, Thomas Hobbes dizia que estava para realizar a sua última viagem, “um grande salto no escuro” (“Cartas”, 1679). Um século depois Kant explicava que ninguém pode experimentar a morte em si mesmo, “pois experimentar é da alçada da Vida”, pelo que só é possível perceber a morte nos outros (“Antropologia de um ponto de vista pragmático”, 1798).

A esse supremo desconhecimento pode associar-se um outro grande incómodo humano que é a solidão, como descreveu Miguel de Unamuno: “Os homens vivem juntos, porém, cada um morre sozinho e a morte é a suprema solidão” (“Do sentimento trágico da vida”, 1913).

Mas talvez a maior dificuldade para racionalizar a morte seja a perspectiva da aniquilação do ser. Assim como não conseguimos racionalizar o período antes da concepção, antes da nossa chamada à existência, também não conseguimos fazê-lo com a fase pós-morte, até pela agravante de agora termos consciência e capacidade de raciocínio para pensar o futuro. A partilha de testemunhos das chamadas experiências de quase-morte (o famoso túnel de luz ou a pessoa a pairar sobre o próprio corpo) ajudam a densar o mistério do que está para lá do último suspiro.

As religiões procuram responder a esta angústia com propostas como o paraíso, a reencarnação, a ressurreição e a vida eterna. Mas ninguém foi tão longe como Jesus quando declarou a Marta em Betânia: “Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá; E todo aquele que vive, e crê em mim, nunca morrerá” (João 11:25,26). Mas desconfio que o Mark Twain estava coberto de razão quando disse que “o homem não morre quando deixa de viver, mas sim quando deixa de amar.”

José Brissos-Lino
JOSÉ BRISSOS-LINO
Fonte:VISÃO online, 13/11/19

 

“Cristianocídio”

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Quando falamos de liberdade religiosa no mundo temos que falar, antes de mais, em perseguição, e sobretudo sublinhar que os cristãos são os mais perseguidos de todos. Sem qualquer dúvida.

Está em curso um cristianocídio. Do milhão e meio de cristãos existentes no Iraque antes de 2003 restam cerca de 150 mil ou menos. A população cristã da Síria foi drasticamente reduzida para dois terços, desde o início da guerra em 2011. A fé cristã no Médio Oriente está posta em causa, não só devido ao genocídio em si mas por causa dos fluxos migratórios contínuos, as crises de segurança e a pobreza extrema. Os cristãos coptas são regularmente assassinados no Egipto, apesar de constituírem cerca de dez por cento da população. Receia-se que algumas comunidades cristãs na região já não consigam recuperar a tempo.

Mas a perseguição religiosa não se confina ao cristianismo. Segundo as conclusões do Relatório “Liberdade Religiosa no Mundo 2018”, publicado pela Fundação “Ajuda à Igreja que Sofre”, a situação de fragilidade de grupos religiosos minoritários piorou em 18 dos 38 países onde há notícia de violações significativas da liberdade religiosa, com especial destaque para Coreia do Norte, Arábia Saudita, Iémen e Eritreia.

Pela primeira vez dois outros países foram incluídos na categoria “Discriminação”: Rússia e Quirguistão. Comparando a situação com 2016 registaram-se mais quatro países com sinais de degradação das condições para as minorias religiosas, pelo que se verifica um aumento geral de violações destes direitos humanos, por parte de regimes autoritários e actores estatais. Apesar de tudo a Tanzânia e o Quénia saíram da classificação como países onde havia perseguição, devido ao declínio da violência militante da Al Shabaad, mas agravou-se noutras latitudes também devido a nacionalismo agressivo.

A ideia de que o mundo está a progredir no bom sentido, em direcção ao respeito pela diversidade religiosa, é falsa. O sucesso militar no desmantelamento do Daesh e outros grupos extremistas ilude a opinião pública ocidental quanto à presente propagação de movimentos islamitas militantes em diversas regiões de África, Médio Oriente e Ásia.

Mas os conflitos entre xiitas e sunitas continuam, assim como os abusos sexuais contra mulheres, a integração de crianças-soldado em grupos guerrilheiros, e os ataques terroristas na Europa e no mundo, contra fiéis de diversas religiões, daí resultando um sentimento de islamofobia, devido à crise migratória mas sobretudo por acção do populismo de extrema-direita. Por exemplo, em Abril de 2017 um agricultor muçulmano na Índia foi assassinado por radicais hindus. Mais de meio milhão de homens, mulheres e crianças rohingya tiveram que fugir do norte de Mianmar para o Bangladesh, devido à violência, violação de mulheres de discriminação em massa.

Estima-se que mais de 300 milhões de cristãos sejam alvo de perseguição em todo o mundo, em especial na chamada “Janela 10/40”, localizada entre 10 e 40 graus a norte do equador. Trata-se de uma área do mundo, com grande pobreza, baixa qualidade de vida e falta de acesso a recursos cristãos. A janela 10/40 compreende uma região que abrange o Saara e Norte de África, bem como muitos países da Ásia Ocidental, Ásia Central, Sul da Ásia, Leste da Ásia e grande parte do sudeste asiático, onde vivem cerca de dois terços da população mundial, predominantemente muçulmana, hindu, budista, animista, judia ou ateia. Grande parte destes governos são contrários a qualquer presença cristã.

A “Voz da Europa” relata que as hipóteses de um cristão num país de maioria islâmica ser assassinado por um muçulmano — simplesmente por ser cristão – são aproximadamente uma em 70.000. O que significa que um cristão que viva num país de maioria islâmica tem 143 vezes mais possibilidades de ser morto por um muçulmano, simplesmente devido à sua fé, do que um muçulmano ser morto por um não-muçulmano em qualquer país ocidental.

E em Portugal? Por cá não existem questões sérias de liberdade religiosa e todos os observadores consideram não existir perseguição religiosa, não só devido às características da nossa constituição, mas sobretudo devido ao facto de vivermos num estado de direito democrático, estarmos enquadrados por uma lei de liberdade religiosa e por termos uma Comissão de Liberdade Religiosa (CLR), órgão independente de consulta da Assembleia da República e do Governo, presidida por Vera Jardim, criada para acompanhar a aplicação da referida lei.

Em matéria de liberdade religiosa, e apesar de todas as imperfeições, Portugal ainda é um oásis neste nosso conturbado mundo.

José Brissos-Lino
JOSÉ BRISSOS-LINO
Fonte:VISÃO online, 6/11/19

Voltámos ao tempo da outra senhora?

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Lê-se e não se acredita. Uma educadora de infância numa escola pública da Madeira viu a directora prejudicar-lhe a avaliação anual por se ter recusado a ir receber um bispo à igreja. Será que o tempo voltou para trás?

Parece que o padre da paróquia sugeriu à escola Escola EB1/PE de Ponta Delgada e Boaventura que os alunos fossem receber o bispo à igreja. A directora, Ana Cristina Abreu, aceitou de imediato e terá pressionado os professores a participar nessa iniciativa sem pensar por um momento que se tratava duma acção inconstitucional, porque o estado é laico, a dita escola é pública e dado o teor da lei em vigor (n.º 16/2001) chamada Lei da Liberdade Religiosa.

A professora Isabel Teixeira, que desconheço quem seja e que está na profissão há 30 anos, terá sido a única pessoa que não se moveu à margem do quadro legal e constitucional, mas acabou penalizada na sua carreira, de forma abusiva e ilegal. Alegou que entende não se dever misturar escola com religião, e que o referido evento não constava do plano anual de actividades, por isso se recusou a levar as crianças à missa em Dezembro de 2018. A directora terá começado por propor a realização de uma missa na escola, o que foi rejeitado pelos professores, mas insistiu em levar as crianças à missa na igreja…

Eduardo Vera Jardim, presidente da Comissão de Liberdade Religiosa, já veio dizer: “Esse parâmetro não deve contar para a avaliação – é inconstitucional que conte. A Constituição é clara, ninguém pode ser prejudicado ou beneficiado por causa da religião, por uma opção religiosa ou por se opor a uma coisa dessas”, mas acrescenta que “há hábitos que levam tempo a perder, mas, para que as coisas mudem, este tipo de situação tem de ter consequências”.

Em 1960 tinha eu seis anos de idade e estava na então chamada 1ª. classe numa escola em Lisboa. Quando as crianças regressaram às salas de aula, vindos da pausa do recreio, depararam-se com um bispo à entrada da porta, obeso e de dedos grossos, no cimo das escadas. As professoras orientavam então os alunos para beijarem o anel ao bispo antes de entrar. Eu não estava habituado a essas coisas e fiz por me esgueirar pelo lado oposto ao que ele estava para não o fazer. E não o fiz.

Já com a idade de 10 anos, no (antigo) ciclo preparatório, aconteceu uma situação ainda pior. A lei impunha a todos os alunos a obrigatoriedade da frequência das aulas de Religião e Moral (católica). Porém, os encarregados de educação poderiam apresentar um requerimento a pedir a dispensa dessa disciplina para os seus filhos. Porque a minha família era cristã mas não católica, o meu pai assim fez, mas a burocracia tem os seus tempos e o deferimento não veio antes do início das aulas.

Um certo dia, estava eu a meio duma aula dessa disciplina quando entra na sala um funcionário com um papel que entregou ao professor. Ele leu e de repente levantou os olhos do documento para a sala e perguntou, com cara de poucos amigos e um tom de voz ríspido: “Quem é o José M. Brissos Lino?” Timidamente levantei a mão, nervoso, a pensar o que teria feito de mal, com a turma toda a olhar para mim, em suspenso. A resposta veio em tom de censura: “Mas tu não podes estar aqui!…” Acto contínuo saí da sala como se tivesse sido expulso por mau comportamento. Senti-me humilhado, discriminado e escorraçado.

Como é óbvio, esse tipo de situações configuram uma coação intolerável, mas eram fruto da época. Para o regime do Estado Novo quem não fosse católico não era bom português.

Porque vivemos em democracia, hoje os alunos podem escolher que disciplina de formação religiosa querem e este tipo de disciplinas são de frequência opcional. Também não creio que o actual modelo seja o melhor mas é o que temos para já, e pelo menos respeita pais e alunos, estando em consonância com as leis e a constituição da república.

Ao contrário de alguns não defendo que as expressões religiosas tenham que desaparecer do espaço público, uma vez que o estado é laico mas a sociedade não é nem tem que o ser. O estado é laico justamente para assegurar liberdade religiosa a todos os cidadãos, uma vez que não toma partido. Por isso estes tiques sectários por parte dos pequenos poderes são intoleráveis e deviam ser alvo de penalização. Aquela professora está certa e a directora errada.

De resto, já existe jurisprudência a partir dum acórdão do Tribunal Constitucional, justamente a propósito dum outro caso ocorrido na Madeira, segundo o qual: “Num país com liberdade religiosa como Portugal, ninguém deve ser obrigado a ter uma religião nem a ter um ensino religioso, assim como também ninguém deve ser obrigado a partilhar a forma como encara a religião ou que religião professa”. O que está em causa é a Lei de Liberdade Religiosa (artigo 4º), que prescreve não poder o ensino público ser confessional, nem o Estado programar a educação segundo quaisquer directrizes religiosas. A escola pública é de todos e não pode ser um instrumento de proselitismo religioso, desde logo à luz da constituição, e os pais não podem ser constrangidos em matéria religiosa, como acontece quando são questionados pela escola sobre a permissão para os filhos irem receber um líder religioso à porta dum templo.    

Jesus Cristo nunca impôs a fé a ninguém e sabia separar claramente a política e a sociedade da religião, que é como quem diz, César de Deus. Mas a tendência de muitos cristãos, ao longo da história tem sido exactamente o contrário. É pena.

José Brissos-Lino
JOSÉ BRISSOS-LINO
Fonte:VISÃO online, 30/10/19

 

A estranha teoria da educação de Edir Macedo

Edir Macedo à esquerda do presidente Bolsonaro, EVARISTO SA

É estranho como um país que gerou educadores notáveis como Paulo Freire (1921-1997) esteja hoje refém de indivíduos com mentalidade obscurantista como Edir Macedo.

O “evangelho segundo Macedo” é contra a educação da pessoa humana, em flagrante contradição com a essência do verdadeiro evangelho de Jesus Cristo, que é o princípio da libertação do ser em todas suas dimensões, incluindo a libertação das trevas da ignorância, tal como Lucas escreve no livro de Actos dos Apóstolos: “Mas Deus, não tendo em conta os tempos da ignorância, anuncia agora a todos os homens, e em todo o lugar, que se arrependam” (17:30). E S. Paulo alertava igualmente a comunidade cristã de Éfeso contra os perigos da ignorância: “Entenebrecidos no entendimento, separados da vida de Deus pela ignorância que há neles, pela dureza do seu coração” (Efésios 4:18).

A teoria da educação de Macedo é paternalista, controladora e opõe-se à autonomia da pessoa. Segundo Herbert Spencer: “A educação deve formar seres aptos para se governarem a si mesmos e não para serem governados pelos outros” (A Educação Intelectual, Moral e Física, 1861). Parece mentira, mas isto foi dito pelo líder religioso neopentecostal: “Minhas filhas vão estudar só até o ensino médio, nada de faculdade, porque se elas forem mais inteligentes que o homem, o casamento está fadado ao fracasso.”

Esta postura começa por evidenciar abuso de poder (“Minhas filhas vão estudar só até o ensino médio.”) O pai é que determina até onde as filhas estudam ou não, em vez de lhes dar liberdade para, querendo, prosseguirem os estudos e aperfeiçoarem a sua formação. De acordo com o “evangelho segundo Macedo” as mulheres não podem continuar os seus estudos a partir do secundário, de modo a prepararem-se para a vida profissional. Porquê? Por que o pai não quer! E porque ele não quer pressiona os pais do seu rebanho para que façam o mesmo na sua casa.

Depois revela um preconceito inqualificável contra o ensino superior (“Nada de faculdade.”) Ao vedar o ensino superior às suas filhas Macedo revela insegurança (por receio de que elas tenham melhor preparação intelectual do que ele), mas também preconceito, por receio de que, ao aprenderem a exercer pensamento crítico possam questionar os métodos do pai ou a trapalhada teológica do seu círculo religioso.

Também é notória a confusão conceptual que vai na cabeça de Macedo, entre conhecimento e inteligência (“Porque se elas forem mais inteligentes que o homem.”), como se conhecimento fosse a mesma coisa do que inteligência, como se acumular conhecimentos tornasse a pessoa mais inteligente, o que, desde logo, revela pouca inteligência. Revela igualmente uma atitude machista (“Quero que casem com macho”), ou seja, o receio de que as mulheres sejam mais inteligentes do que os maridos, e que passem a mandar na relação. Será que a IURD vai passar a pedir um teste de QI aos noivos antes de celebrar casamentos, para comprovar que os delas são mais baixos do que os deles?

Macedo parece ligar o sucesso do casamento a uma sujeição ao sistema patriarcal. No seu entender, o sucesso da relação conjugal passa obrigatoriamente pela condição de os maridos serem sempre mais inteligentes do que as suas mulheres… Quando condena ao fracasso toda a relação na qual a mulher é eventualmente mais inteligente do que o marido, está não apenas a menorizar as mulheres, mas a impor-lhes uma sujeição arcaica em flagrante atropelo aos direitos da pessoa humana…

Finalmente, mas não menos grave, Macedo defende que quem obtiver uma licenciatura irá “servir a si mesmo” em vez de servir a Deus… Portanto, para a personagem, só os ignorantes, os iletrados e os menos preparados para a vida poderão servir a Deus. Que teologia é esta, feita à martelada, que contraria não só o bom senso mas toda a base bíblica e a tradição cristã, sendo em si mesma um atentado à inteligência?

Que se saiba, Saulo de Tarso – a grande figura do Novo Testamento a seguir ao próprio Jesus Cristo – era dos homens mais cultos do seu tempo, mas também altamente preparado no judaísmo da época, tendo aprendido aos pés de Gamaliel, o rabi mais famoso em Israel, falava várias línguas, conhecia profundamente a cultura helénica e ainda era cidadão romano. Nada disto o impediu de servir a Deus com todo o fervor.

O discurso obscurantista deste líder religioso revela bem a influência perniciosa que as lideranças neopentecostais estão a exercer sobre as populações, mas revela ainda mais sobre a falta de espírito crítico destas, que não sabem fazer como os bereanos, que “de bom grado receberam a palavra, examinando cada dia nas Escrituras se estas coisas eram assim” (Actos 17:11b).

“A linguagem nunca é neutra” dizia o professor, pedagogo e filósofo Paulo Freire, que perante tal discurso deve estar a dar voltas na tumba…

José Brissos-Lino
JOSÉ BRISSOS-LINO
Fonte:VISÃO online, 23/10/19

 

Um poeta na Capela Sistina



Marcos Borga (MB)

 

 O papa Francisco acaba de colocar o colégio cardinalício em risco, ao incluir nele um poeta. Devia saber que os poetas são gente perigosa em qualquer parte, mesmo entre cardeais… O tempo o dirá.

José Tolentino de Mendonça, o filho do pescador do Machico, chegou longe na estrutura romana. Ele é um homem europeu mas periférico, ilhéu do Atlântico com passagem pelas Áfricas mas poeta do mundo, filho de gente pobre mas intelectualmente rico, pensador e filósofo, sem deixar de ser um homem do povo, amigo dos livros – sendo arquivista e bibliotecário da Santa Sé – é ele mesmo um livro onde Deus escreve palavras arrebatadoras, humilde como poucos mas espiritualmente notável.

Tolentino faz a ponte entre a Fé e a Cultura, entre a vida quotidiana e a espiritualidade, entre a razão e a emoção, sempre em busca do homem completo iluminado por Deus. E fá-lo com uma humildade tocante que não deixa ninguém indiferente. Mostrou em Lisboa que se pode ser um grande pastor tendo apenas uma pequena paróquia a cargo.

Ao respeitar o ser humano que não tem fé religiosa, fazendo uso da sua capacidade de escuta, e com ele dialogando, Tolentino demonstra que um cristão pode ser ainda hoje alguém parecido com o Nazareno, e que a verdadeira fé não coloca à distância os que não pensam nem sentem como ele. Comprova assim que mais vale construir pontes do que muros, e que a luta espiritual não é “contra a carne e o sangue” (Efésios 6:12), no dizer de S. Paulo, pelo que a genuína fé cristã não precisa de cavar trincheiras contra os “inimigos”, nem de promover cruzadas contra os novos “infiéis”.

De resto, a Grande Comissão não passa pela defesa da Fé ou por atacar quem não a tem ou a preserva de forma diferente: “Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; Ensinando-os a guardar todas as coisas que eu vos tenho mandado; e eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos. Amém” (Mateus 28:19,20). Como se vê o mandato limita-se a discipular, baptizar e ensinar, mas nunca à força.

O novo purpurado compreende que o Evangelho não é uma imposição mas uma proposição, segundo a missão entregue por Jesus Cristo aos discípulos: “E se em qualquer cidade vos não receberem, saindo vós dali, sacudi o pó dos vossos pés, em testemunho contra eles” (Lucas 9:5). Confia firmemente no livre arbítrio e no princípio do binómio liberdade/responsabilidade inscrito na natureza humana.

Tenhamos presente, enquanto realidade histórica, que são os poetas que mudam o mundo, pois como Gedeão escreveu e Manuel Freire cantou: “o sonho comanda a vida” e “sempre que o homem sonha o mundo pula e avança”.

Homero deu corpo a uma narrativa fundacional dos antigos Gregos enquanto povo, Vergílio fez o mesmo com os latinos, Shakespeare marcou o seu tempo e as artes para sempre, Salomão ficou na história hebraica e universal com o seu poema de amor à Sulamita, Goethe esculpiu magistralmente o grande drama da existência humana no seu Fausto (1808). Rimbaud ainda hoje impressiona na simbolização da sua busca espiritual, antes de morrer muito jovem, Camões ousou organizar a alma portuguesa desde os tempos do Império, e Federico García Lorca, cuja obra e memória sobreviveu ao seu assassinato pelos franquistas, inspirou gerações na resistência à ditadura espanhola.

Segundo Maurice Blanchot, o acto poético faz com que a linguagem deixe de ser instrumento e revele a sua essência, que é a de “fundar um mundo” Isto é, a mesma essência do pensamento, que funda as coisas e a realidade humana.

Em qualquer caso, Tolentino fará a diferença no colégio cardinalício. “És a Poesia!”, ter-lhe-á dito o papa momentos antes da imposição do barrete cardinalício. Qual menino entre os doutores será um poeta entre cardeais mais velhos, sem deixar de ser também um doutor das palavras e da Palavra, pois foi nestas que encontrou o sentido da sua vida.

A acreditar no que disse Ludwig Wittgenstein: “Os limites da minha linguagem significam os limites do meu próprio mundo” (Tratado Lógico-Filosófico, 1921), então Tolentino é uma figura universal. E se “a primeira invenção da palavra não veio das necessidades, mas sim das paixões”, como defendeu Jean-Jacques Rousseau (Sobre a Origem das Línguas, 1781), pode dizer-se que o novo cardeal português é um homem de grandes paixões.

Talvez de paixões aparentemente contidas, mas paixões.

José Brissos-Lino
JOSÉ BRISSOS-LINO
Fonte:VISÃO online, 16/10/19

A desvairada parvoíce do politicamente correcto

Tom Flathers

 

Já não há pachorra para isto. A ideologia do politicamente correcto tornou-se uma autêntica ditadura que não permite espaço para o humor, nem contextualização histórica, nem sequer uma pitadinha de bom senso. Estamos perante uma espécie de fascismo social e relacional 

Fiquei completamente estupefacto com o recente episódio protagonizado por Justin Trudeau, primeiro-ministro do Canadá. Alguém desenterrou uma imagem de há dezoito anos, quando participou numa festa temática sobre “As Mil e Uma Noites”, em que os estudantes se caracterizaram e ele foi de Aladino, com o rosto escurecido. Ai, Jesus!, que o homem é um perigoso racista… Mas o mais desconcertante é que Justin, em vez de repudiar tal parvoíce, ainda veio pedir desculpa, justificando-se com as suas origens privilegiadas que não o terão feito entender quão prejudiciais poderiam ser atitudes deste tipo. Ao que obriga a desvairada parvoíce do “politicamente correcto”…

Mas aconteceu caso semelhante em solo europeu, na velha Albion. O futebolista profissional Bernardo Silva, que joga no Manchester City, publicou um tweet bem-disposto, na brincadeira com o seu grande amigo e colega de equipa desde os tempos em que ambos jogavam no Mónaco, o negro Benjamin Mendy, onde o comparava ao boneco dos chocolates “Conguito”. Foi imediatamente acusado de racismo pelos Torquemada de serviço, isto é, a Associação de Combate ao Racismo “Kick Out”, que veio exigir medidas à federação inglesa, a qual escreveu ao clube a pedir informações. O treinador Pep Guardiola defendeu o jogador referindo que era apenas uma piada entre grandes amigos e que não tinha qualquer conotação racista, adiantando que o Bernardo “é uma das melhores pessoas que conheci na vida”.

Bernardo Silva apagou a publicação de imediato, lamentando já não ser possível “brincar com um amigo” e escreveu à federação enviando um depoimento de Mendy, a testemunhar não ter ficado ofendido, mas, segundo a BBC “é acusado de ter cometido uma violação agravada das regras da FA porque incluía referência à raça e / ou cor e / ou origem étnica”.

Esta moda do politicamente correcto está a inventar problemas onde eles não existem e a revelar um extremismo perturbador que ninguém sabe onde vai parar. A ideia que dá é que estas pessoas que acusam alguém de racista por tudo e por nada, especialmente por nada, como nestes casos, escondem uma tentativa de assumir um poder que não conseguiriam de outro modo. Bem sabemos que as acusações contra famosos rendem na opinião pública e garantem publicidade global, já que as redes sociais e mesmo os jornalistas agarram em todos estes casos e “casinhos”. Mas a esperança que nos resta é que os Torquemadas modernos acabem por descobrir que o ridículo mata.

Ao que parece, acusar de racismo sem provas nem indícios um primeiro-ministro de um país desenvolvido e um futebolista internacional que joga num dos maiores clubes do mundo e no mais importante campeonato a nível global, merece bem o risco do ridículo e chama a atenção para as organizações que inventam estes casos. Na sociedade mediática em que hoje vivemos tudo é permitido em nome de uma causa e o crime compensa.

Só que enquanto estes Torquemadas da treta se vão entretendo com os casos fabricados, esquecem-se de lutar contra o verdadeiro racismo que continua entranhado no tecido social. E esquecem-se que o racismo tem mais do que um sentido. Também há racismo contra o homem branco e racismo entre negros, a que alguns chamam tribalismo, assim como racismo de negros contra mulatos e vice-versa ou contra asiáticos.

O cristianismo primitivo, inspirado por Jesus, levantou uma bandeira contra toda a espécie de racismos ao apresentar-se desde o início como uma proposta de fé universalista: “Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” (Mateus 28:19); “E disse-lhes: Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura” (Marcos 16:15). Já durante o ministério público de Jesus se haviam gerado tensões recorrentes entre o judaísmo da época e a perspectiva universal da mensagem e praxis do Nazareno, que nunca discriminou pessoas tendo em conta a sua origem, sexo, religião ou condição social.

Quer a elite do Tempo de Jerusalém (classe sacerdotal, saduceus, sinédrio), quer o povo (incluindo os fariseus), nunca compreenderam bem a lógica de abertura a todos em que se movia, propondo assim um novo paradigma, caracterizado pela substituição da velha aliança (com o povo de Israel) por uma nova (com toda a humanidade). Quando escreveu às comunidades cristãs da Galácia, S. Paulo retomou a ideia de que a fé cristã é indiferente às barreiras religiosas, sociais e de género: “Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gálatas 3:28).

Por tudo isto parece-me urgente descobrir o antídoto para o veneno social do politicamente correcto, essa nova forma de intolerância, para que um dia não sejamos obrigados vir a gritar: “Abaixo a ditadura!”.

José Brissos-Lino
JOSÉ BRISSOS-LINO
Fonte:VISÃO online, 9/10/19

Crentes sem religião, à procura de Deus

 

 

Na abordagem ao fenómeno religioso há que respeitar toda a gente, os crentes de qualquer religião ou sistema filosófico, os agnósticos e os ateus. Mas a complexificação da vida contemporânea está a levantar novas categorias até hoje desconhecidas. É o caso dos crentes sem religião

Mário Soares dizia que não era crente porque não tinha sido tocado pelo dom da fé. De facto a fé é uma dádiva (dom) de Deus. Segundo o apóstolo Paulo: “Não vem das obras, para que ninguém se glorie” (Efésios 2:9). Ou seja, a fé, sendo algo sobrenatural, não é mérito humano. O factor humano só intervém no processo de gestão desse dom. Se eu tenho fé, se a aprecio e quero continuar a tê-la, procuro estimulá-la em mim (S. Judas Tadeu chama-lhe “santíssima fé” – Judas 1:20), mas se não a considero, então não faço nada nesse sentido e acabo por perdê-la. É simples. Paulo exorta Timóteo a conservá-la: “Conservando a fé, e a boa consciência, a qual alguns, rejeitando, fizeram naufrágio na fé” (1 Timóteo 1:19); “Guardando o mistério da fé numa consciência pura” (3:9).

O que o antigo presidente da república e primeiro presidente da Comissão de Liberdade Religiosa parecia não entender é que, a fé em Deus é uma escolha, pois é dada liberalmente a qualquer pessoa que a procura e não o resultado duma selecção divina, de forma aleatória ou discriminatória: “Porque, para com Deus, não há acepção de pessoas” (Romanos 2:11). O cristianismo é uma religião de revelação, sendo a maior fonte de revelação as Escrituras sagradas: “De sorte que a fé é pelo ouvir, e o ouvir a palavra de Deus” (Romanos 10:17).

Tomás Halík diz que a religião mais difundida dos nossos dias é o “algoísmo”, com esta base de crença: “eu posso não acreditar em Deus, mas tem de haver alguma coisa acima de nós”. Portanto grande parte das pessoas estão disponíveis para crer no sobrenatural mas não num Deus pessoal. Será uma divindade presente na energia, no cosmos ou na natureza, mas não um ser divino com personalidade, com uma dimensão moral, com vontade própria e que se dá à relação connosco.

Se é evidente que as religiões sequestraram Deus tantas vezes dentro duma caixa epistemológica, ritual e conceptual, passando a falar em seu nome e a criar leis e regulamentos abusivos para os fiéis, travestindo uma comunidade de fé numa estrutura organizacional com vista ao exercício do poder, também é verdade que muitos indivíduos não conseguem conceber a existência humana sem uma dimensão metafísica.

Nem o progresso, nem o avanço da educação e da ciência resolveram esta questão. Por isso temos hoje alguns dos maiores cientistas do mundo que se declaram crentes em Deus, enquanto outros colegas seus de calibre intelectual semelhante se nomeiam ateus ou agnósticos. Assim, a fé não é uma questão de dimensão intelectual, de cabedal científico, formação, educação ou falta delas, antes se movendo numa outra dimensão, já que ninguém pode provar cientificamente a existência de Deus nem a sua inexistência.

De facto a educação ajuda muito mas não é sinónimo de respeito e humanidade. Consta que no fim da II Guerra Mundial alguém encontrou uma carta num dos campos de concentração, dirigida aos professores: “Como sobrevivente de um campo de concentração vi o que ninguém devia ter visto. Câmaras de gás construídas por engenheiros, crianças envenenadas por médicos, recém-nascidos mortos por enfermeiras, e mulheres e bebés fuzilados e queimados por licenciados em universidades. Assim, tenho dúvidas sobre a eficácia da Educação. Por favor, ajude os seus alunos a tornarem-se humanos. Que do seu trabalho nunca resultem monstros treinados ou psicopatas hábeis. Ler, escrever e saber aritmética, só serão importantes se fizerem as nossas crianças mais humanas.”

Muita gente não consegue superar o facto de, em nome das religiões, se terem promovido guerras e destruição, muito embora também os não religiosos tenham provocado morte e devastação ainda maiores, como Mao, Estaline ou Pol Pot. Talvez por isso muitos tenham alergia às estruturas religiosas mas preservem a sua crença em Deus, a acreditar nos estudos sociológicos mais recentes. Em última análise, Deus não terá culpa das asneiras dos homens, mesmo quando realizadas (abusivamente) em seu nome.

Os crentes sem religião gostam de visitar locais que remetem supostamente para uma conexão com uma entidade difusa, algo que criou o universo e que deu o primeiro clique para que a vida nascesse do nada. Tais sítios podem ser o topo duma montanha, uma falésia junto ao mar ou um templo. Afinal, talvez seja necessário muito mais fé para crer em algo indefinível e inalcançável do que no Deus de amor, misericórdia e relação representado em Jesus Cristo, o qual “sendo o resplendor da sua glória” é ainda caracterizado como “expressa imagem da sua pessoa” (Hebreus 1:3).

José Brissos-Lino
JOSÉ BRISSOS-LINO
Fonte:VISÃO online, 2/10/19

 

O homem Jesus Cristo

Simona Pilolla / EyeEm

 

 

Está na hora de sublinhar a humanidade de Jesus Cristo. A identidade do Cristo Filho de Deus esconde muitas vezes a sua condição humana, que é talvez aquela que mais deveria influenciar e inspirar homens e mulheres que assumem a fé cristã

André Silva, o líder do PAN, um partido animalista recauchutado de ambientalista, declarou em tempos: “Há características mais humanas num chimpanzé ou num cão do que numa pessoa em coma.” Os defensores dos animais vão mais longe e afirmam que há características mais humanas em animais do que nalgumas pessoas, ou que há pessoas que não estão em coma e que têm atitudes e pensamentos que os alinham com os comportamentos mais primários. Penso que tais declarações tocam em questões diferentes.

Compreendemos que há seres humanos que revelam comportamentos irracionais, e que há animais que estabelecem uma espécie de empatia na interacção com os humanos, como os caninos, por exemplo. Assim como há seres humanos a demonstrar por vezes os comportamentos mais primários. Mas nada disso é suficiente para nivelar a natureza humana com a animal.

O especismo é uma moda dos novos tempos. Não se limita a condenar a crueldade para com os animais mas pretende reconhece-lhes direitos semelhantes aos das pessoas. Esta variante filosófica só é assumida por partidos fora do sistema democrático a que estamos habituados. Jerónimo de Sousa, por exemplo, declarou recentemente que não conhece “ninguém que não goste de proteger e defender os animais, mas não se adulterem nem subvertam princípios fundamentais do relacionamento do Homem com o próprio animal”. Não será tanto assim. De facto sempre houve quem exercesse crueldade sobre animais. Provavelmente, mais cedo ou mais tarde tais indivíduos também irão tratar mal as pessoas. Mas a ideia de rebaixar o ser humano ao nível do animal irracional é repulsiva.

Os animalistas caracterizam-se por só defenderem certos tipos de animais, deixando de fora dos seus cuidados todos os outros. Porque defender apenas ou animais domésticos? Ou os touros? Ou os animais do circo? E porque não os répteis, os ratos, as baratas ou os piolhos? Não pertencem também ao reino animal? Os animalistas são perigosos, dada a tendência autoritária e proibicionista que revelam. No caso português o seu programa eleitoral não apresenta um projecto político consistente para a governação do país, sendo omisso, superficial e inconsequente.

Peter Singer, conhecido académico de filosofia em Princeton tem escrito obras sobre ética aplicada, onde defende que se considerem alguns animais não humanos como pessoas, atribuindo à sua vida valor idêntico à dos humanos. Vai mesmo mais longe ao defender que alguns membros da espécie humana não são pessoas, enquanto alguns das outras espécies são pessoas. Mas colocar os seres humanos ao nível dos animais é patético, insultuoso e completamente contra-natura, quanto mais inverter a lógica…

Este fulano foi o mesmo que defendeu a ideia adiantada pelo PAN de que uma pessoa sem consciência de si já não deve ser considerada humana e propôs que os hospitais deveriam desligar as máquinas, por razoabilidade económica. Mas quando a sua própria mãe entrou nessa situação gastou tudo o que tinha para a manter viva… Confrontado pelos seus alunos face a tal incoerência, justificou-se dizendo que, quando se trata da nossa mãe é diferente. Estamos conversados sobre a sua honestidade intelectual.

Para um cristão, os seres humanos foram criados à imagem e semelhança de Deus. Entenda-se imagem e semelhança moral e espiritual: “E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra” (Génesis 1:26). A restante natureza como os mundos animal, vegetal e mineral, serão parte da Criação e por isso devem ser respeitados e protegidos, mas não receberam o espírito divino. A Torah explicita que o ser humano recebeu mandato de os proteger, assim como de preservar o ambiente, mas não de os exterminar ou degradar.

Não é subvertendo as regras do jogo que o faremos. Tratar animais como pessoas e seres humanos como animais irracionais é subverter o processo. Deixar morrer de fome uma criança pobre e criar animais de companhia como nababos é crime de lesa-humanidade. Alguns chegam a deixar fortunas em herança ao seu animal de estimação, que algum advogado irá depois gerir, sabe-se lá como… Tais aberrações só se explicam pela desumanização desenfreada a que assistimos, essa loucura que atacou há muito as pessoas e as suas relações umas com as outras.

Talvez valesse a pena – pelo menos aos que se assumem cristãos – conhecer o que os textos bíblicos que falam sobre os animais e a natureza, em especial o que disse Jesus Cristo sobre a matéria. Mais importante, ainda, será olhar para o Jesus Cristo homem, nascido de mulher, e entender como dignificou a condição humana como nunca ninguém antes dele tinha feito. Sempre se referiu ao mundo animal: “Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta” (Mateus 6:26) e vegetal: “Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham nem fiam” (Mateus 6:28”) com atenção, respeito e carinho, mas nunca os considerou iguais ou superiores ao seu humano: “Não tendes vós muito mais valor?” (Mateus 6:26).

Mas agora é in chamar Alfredo a um cão e Bo a um menino.

José Brissos-Lino
JOSÉ BRISSOS-LINO
Fonte: VISÃO online, 25/9/19

O Brexit dos pobres

Dan Kitwood

 

Um Brexit puro e duro deixará um rasto de destruição nas vidas e famílias por todo o Reino Unido. Foi isso que a Igreja de Inglaterra disse, procurando ser fiel à sua responsabilidade profética

O processo político do Brexit tem-se revelado uma trapalhada do princípio ao fim. Desde logo, na campanha para o referendo valeu toda a sorte de informações falsas a fim de levar ao engano os eleitores. A União Europeia foi sempre apontada pelos brexiters como a fonte de todos os males, mensagem que colheu nos meios rurais e nas faixas populacionais mais idosas, onde o saudosismo do antigo Império Britânico é mais forte e onde a canção patriótica do século XVIII Rule, Britannia! ainda emociona. Já as gerações mais jovens estão muito mais adaptados à globalização e abertas ao mundo, despojadas de tiques de superioridade, por isso votaram maioritariamente no Remain.

O ex-primeiro-ministro David Cameron quis reforçar a sua legitimidade no partido e lançou o referendo em 2016, crente de que o ganharia. Perdeu, para surpresa geral e abriu-se uma caixa de Pandora. Ou seja, os ingleses disseram que queriam sair da UE mas não se entendem sobre como nem quando. O espectáculo dado ao mundo por Teresa May foi degradante e agora, com Boris Johnson ainda desceu mais de nível.

O populista Donald Trump foi dos poucos a aplaudir a triste figura de Boris porque lhe interessa uma Europa o menos forte possível, na ilusão de afirmar os Estados Unidos num mundo em mudança, onde cada vez exerce menos influência.

Em boa hora a igreja anglicana advertiu o país para o duro impacto que teria sobre as camadas mais pobres do Reino Unido uma saída da EU sem acordo, como Boris defende e no momento em que o primeiro-ministro solicitou à Rainha Isabel II a suspensão do Parlamento, numa manobra política antidemocrática sem precedentes. Mais de vinte bispos anglicanos alertaram em carta aberta para o “custo potencial” de um Brexit duro para “os menos resistentes às crises económicas”.

O populismo está à flor da pele, com um primeiro-ministro não-eleito a mandar encerrar um parlamento eleito, apenas para levar por diante uma saída da UE sem acordo, contra a opinião geral dos representantes democráticos do povo britânico e, eventualmente, contra a opinião actual dos próprios eleitores. E tudo isto sem se preocupar com a possível implosão do Reino Unido, tendo em vista a eventual independência da Escócia (que não se quer desligar da Europa) e a previsivelmente perigosa crise política na Irlanda, que não admite a reposição duma fronteira.

Segundo o documento episcopal: “A soberania do Parlamento não é apenas um termo vazio, baseia-se em instituições que devem ser honradas e respeitadas: a nossa democracia está em perigo devido ao respeito displicente em relação a elas”.

Segundo o Religión Digital o arcebisto de Cantuária, Justin Welby, mostrou-se disponível para presidir a um fórum de cidadãos que aborde o Brexit sem prejuízo de ninguém em particular, de forma a dar eco a todas as vozes no debate actual: “Os pobres, os cidadãos da UE no Reino Unido e os cidadãos britânicos na Europa devem ser respeitados. A fronteira irlandesa não é um simples totem político e a paz na Irlanda não é uma bola que os ingleses possam pontapear: o respeito às preocupações de ambos os lados da fronteira é essencial”.

Regressei agora de Inglaterra e verifiquei que o ambiente neste momento é de grande inquietação, especialmente entre os mais vulneráveis da sociedade. Já vão faltando produtos alimentares nalguns supermercados. Há grande movimentação política. Na segunda-feira os democratas-liberais realizaram uma conferência e defendem abertamente novo referendo. Boris Johnson foi a Bruxelas empatar, foi vaiado e nem se dignou falar aos jornalistas na conferência de imprensa conjunta, como é hábito. E no momento em que escrevo espera-se o veredito do Supremo Tribunal sobre a saída sem acordo, já condenada por um tribunal da Escócia.

Mas a verdade é que os portugueses que vivem no Reino Unido estão igualmente aflitos e em estado de alerta, altamente preocupados com o seu futuro. É sabido que as crises económicas e sociais castigam sempre os mais pobres e socialmente mais frágeis.

O teólogo checo Tomás Halík diz que “o grande desafio com que o Cristianismo se vê hoje confrontado não é o da sua sobrevivência, mas o da sua relevância.” Se a igreja de Cristo se alhear dos problemas das populações e calar a sua voz profética para pouco servirá. Por isso a Igreja Anglicana acabou de dar um bom exemplo ao país e ao mundo.

José Brissos-Lino
JOSÉ BRISSOS-LINO
Fonte: VISÃO online, 18/9/19

 

O velho equívoco político da Igreja

Zelma Brezinska / EyeEm/ Getty Images

Os ecos da promiscuidade político-religiosa de países do continente americano soam estranhamente na Europa, a quem a modernidade ensinou a separar as águas, para benefício mútuo dos Estado e das religiões

No Islão, mesmo os países considerados democráticos revelam uma grande dificuldade em respeitar o princípio laico da liberdade religiosa. Tal circunstância decorre duma certa interpretação corânica inspirada na sharia, que resulta em não conseguir separar a vida pública da religião nem da vida privada dos cidadãos. No Ocidente vemos hoje emergir fenómenos sociais de recorte populista também através da via religiosa, como nos Estados Unidos com figuras como Donald Trump, ou no Brasil, com Bolsonaro, enquanto versão tropical do primeiro.

Do ponto de vista do cristianismo consideremos a vertente católica-romana como ocupando um lugar à parte, tanto pelo facto de se organizar em sistema de pirâmide, como por ter a sua sede mundial num território independente – o Vaticano – e por isso o seu chefe máximo se apresentar como chefe de Estado, sendo também um líder político, embora sui generis. Isto permite exercer uma influência inigualável por comparação com as demais confissões cristãs. Embora o arcebispo de Cantuária ocupe o lugar de líder espiritual da Igreja de Inglaterra e referência da Comunhão Anglicana – sendo a rainha a sua chefe formal –, a verdade é que os anglicanos não possuem a mesma visibilidade ou poder político.

Porque o mundo protestante não se organiza em estrutura de pirâmide, é raro surgirem líderes que os representem a nível global. O evangelista americano Billy Graham (falecido em 2018) foi uma excepção, dada a sua notoriedade, que lhe advinha do facto de ter pregado em grandes campanhas evangelísticas por todo o mundo. Foi o primeiro a conseguir juntar lado a lado, num mesmo estádio, negros e brancos na África do Sul ainda sob o regime do aparthaid, e o único a ter acesso a regimes comunistas antes da queda do Muro de Berlim. Mas também se tornou conhecido por ter desempenhado o papel de conselheiro de presidentes dos Estados Unidos, como Eisenhower, Nixon, Johnson, Bill Clinton e a família Bush.

O facto é que as igrejas cristãs sempre procuraram mover-se próximo do poder secular. E as que não tinham acesso aos corredores do poder ansiavam por isso, numa evidente contradição com o princípio bíblico e os ensinamentos de Cristo, que sempre afirmou: “O meu reino não é deste mundo; se o meu reino fosse deste mundo, pelejariam os meus servos, para que eu não fosse entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui” (João 18:36). E quando foi confrontado com uma questão política, a partir duma pergunta sobre o pagamento de impostos a Roma, fez questão de separar as águas: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Lucas 20:25). Podemos então dizer que foi o próprio Jesus Cristo o primeiro a invocar o princípio do estado laico.

Então por que motivo a Igreja nalguns países revela ânsia de estar perto do poder, para o influenciar ou mesmo exercer? Talvez porque a Igreja se deixou seduzir pela glória dos homens, que Jesus sempre rejeitou: “Eu não recebo glória dos homens” (João 5:41). Ou porque deixou de acreditar que a Igreja pertence a Cristo e que é Ele mesmo quem a defende e não a classe política: “(…) edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mateus 16:18). Alguns dos líderes judaicos punham a sua fé no Nazareno mas não o assumiam em público por causa dos radicais (fariseus) que os poderiam expulsar do meio religioso: “Porque amavam mais a glória dos homens do que a glória de Deus” (João 12:43).

Grupos neopentecostais e igrejas evangélicas tomam Bolsonaro como ungido de Deus, atirando assim para o lixo os seus próprios princípios éticos, além da boa educação e do senso comum. O mesmo fazem os evangélicos americanos à volta de Trump. A sede do poder é tão grande que cega o entendimento. No caso brasileiro trata-se duma reacção epidérmica a décadas de corrupção, à persistente insegurança e à agenda fracturante dos governos anteriores.

Mas este sector religioso tem vindo a investir fortemente e há décadas na política, fazendo eleger os seus pastores – que deviam dedicar-se antes ao ministério – como prefeitos, vereadores e parlamentares, através do sistema do “curral eleitoral” (fazendo campanha nos púlpitos e dando aí indicação pública de voto!) a fim de beneficiar as igrejas. Uma dupla perversão, quer do múnus pastoral, quer do verdadeiro propósito da política. Um desastre, que levou até a chamada “bancada (parlamentar) da Bíblia” a revelar-se como a mais corrupta do país…

A cereja em cima do bolo foi agora a unção com óleo e oração – com pompa e circunstância – por um líder neopentecostal corrupto em favor do católico Bolsonaro, que já tinha prestado apoio anteriormente, pelo menos a Lula, Dilma e Temer. Ou seja, o que interessa mesmo é estar colado ao poder. E tanto melhor quando se retribuem os favores.

José Brissos-Lino
JOSÉ BRISSOS-LINO
Fonte: VISÃO online, 11/9/19

 

A virtude foi de férias?

Jeff J Mitchell

 

Diz o povo que no meio é que está a virtude. Só que não se consegue encontrar a senhora em lado nenhum. E, se foi de férias, ninguém sabe para onde

Talvez não valha a pena responsabilizar apenas as redes sociais por esta fase de profunda crispação nas relações humanas, que permite aos seus utilizadores esconderem-se atrás dum monitor e debitarem num teclado toda a espécie de acusações infundadas, disparates e diatribes contra quem quer que seja, tanto no plano político como nas relações sociais e profissionais.

Talvez este estado de coisas seja resultado também da onda de notícias falsas (fake news), da debilidade mental de boa parte das lideranças políticas do nosso tempo, do ressurgimento dos regimes autocráticos com aparência democrática, da desvalorização da ciência e dos saberes e subsequente glorificação da ignorância. E quem sabe até se as alterações climáticas que parece estarem a torrar os miolos de muita gente não terão aqui também alguma responsabilidade.

O facto é que resvalámos para um perigoso extremismo político pela mão dos populismos de direita e de esquerda, assistindo-se presentemente a uma tendência no sentido do desaparecimento das figuras moderadas e suas ideias e propostas, que foram sendo substituídas pela ascensão dos sectários, duma intolerância generalizada inexplicável e de proto-fascismos ideológicos de ambos os lados do espectro político. Bem sei que o fascismo enquanto regime político clássico do ponto de vista conceptual não está aí, mas o fascismo ideológico sim e mete-se pelos olhos dentro. Dum modo geral chamamos-lhes movimentos populistas.

Existe hoje uma profunda crise democrática no centro do espectro político. O que se vê são posições ideológicas extremadas, sempre associadas à emergência dos nacionalismos, da xenofobia, do racismo, do medo e do ódio ao imigrante, ao refugiado e ao estrangeiro. As opções ideológicas passaram a ser caracterizadas pelo tudo ou nada, vacilando entre um extremo e o outro. Se aparecem vozes de bom senso apelando ao equilíbrio, à moderação, à negociação e à diplomacia, são pouco ouvidas.

Os governantes recorrem hoje ao Twitter e outras redes sociais para insultar os seus interlocutores ou destilar ódios e boçalidade. Radicalizam. Dividem os governados. Já não se ouve dizer a um presidente, no discurso de vitória em noite de eleições, que vai trabalhar em favor de todos os compatriotas. Pelo contrário, governa em campanha permanente para criar tensões e cavar fossos entre faixas da população, agindo permanentemente como chefe de facção, a fim de manter os apoiantes em histeria de sustentação das suas posições, que por sua vez tendem a desculpar-lhes todas as asneiras, em nome da guerra que o seu eleito está a travar contra o “inimigo”. É o velho truque do “dividir para reinar”.

Compreende-se que o nacionalismo seja uma tentativa de resposta ao multilateralismo face a receio da perda de identidade ou poder. Mesmo no âmbito do projecto europeu se verifica a pulsão nacionalista, que abriu a porta ao Brexit e a fenómenos como os proto-fascistas Salvini, em Itália ou o húngaro Viktor Orbán, mas também a movimentos idênticos na Alemanha (AfD), França (Front National), Espanha (Vox) e outros. Mas o pior nacionalismo é quele que se mascara de patriotismo. Dizia Umberto Eco: “Alguém disse que o patriotismo é o último refúgio do cobarde; aqueles que não têm princípios morais normalmente enrolam-se numa bandeira e esses bastardos falam sempre na pureza da raça” (Cemitério de Praga, 2010).

Mas a origem dos populismos radica sobretudo na corrupção, em fenómenos associados à imigração, na política sem alma e num pragmatismo que destruiu qualquer tom ideológico na governação. Os jovens europeus que se deixaram seduzir pelo extremismo islâmico e aderiram ao Daesh procuravam sobretudo uma bandeira, embora de forma atabalhoada. Essa bandeira não era agitada em França desde o Maio de 1968 e na Alemanha desde 1989, quando caiu o Muro de Berlim e o país foi reunificado. Tal como aconteceu com o ocaso do comunismo no Bloco de Leste, a actual crise do capitalismo está aí e o sistema contorce-se à procura de algo novo.

Talvez a juventude europeia assuma agora a defesa do ambiente como a sua nova bandeira. Pelo menos é uma causa planetária que não divide países nem continentes, sendo do interesse de todos, até porque, em última análise, é da sobrevivência humana que se trata.

Em todo o caso valerá a pena lembrar aos cristãos, nestes tempos extremados, que a moderação é uma virtude a cultivar: “Porque Deus não nos deu o espírito de covardia, mas de poder, de amor e de moderação (2 Timóteo 1:7).

José Brissos-Lino
JOSÉ BRISSOS-LINO
Fonte: VISÃO online, 4/9/19

A mulher de dois mundos

Bartosz Hadyniak

As mulheres movem-se hoje em dois mundos muito diferentes. Se num deles estão a conquistar as posições a que têm naturalmente direito, no outro permanecem acantonadas por condicionamentos culturais, políticos, sociais e religiosos

Decerto que no dia 30 de Novembro de 1872, quando se realizou o primeiro jogo da história entre selecções nacionais (Escócia-Inglaterra), em plena época vitoriana, não passava pela cabeça de ninguém que, passado pouco mais de um século, o mundo inteiro veria uma das mais importantes partidas globais a ser apitada por uma equipa feminina de arbitragem.

E se dissessem que essas mulheres concitariam elogios generalizados pelo seu desempenho e o máximo respeito por parte dos jogadores e treinadores intervenientes, isso seria considerado loucura. De facto, a árbitra Stephanie Frappart, auxiliada por Manuela Nicolosi e Michelle O’Neill, fez história ao tornar-se a primeira mulher a apitar uma prova masculina da UEFA, a final da Supertaça Europeia, recentemente disputada em Istambul. Se ainda acrescentassem que o jogo se realizaria em país muçulmano, a incredulidade seria então insuportável.

Este é o mesmo mundo onde muitas mulheres ainda não podem estudar, votar ou participar na vida das suas comunidades em igualdade de condições com os homens. Onde não podem contactar com um homem a menos que estejam acompanhadas por um elemento masculino da família, onde não podem assistir a um jogo de futebol ou onde são mutiladas na genitália em crianças.

Em El Salvador há dezenas de mulheres a cumprir longas penas de prisão (até 40 anos) resultantes de condenações à luz da lei do aborto, depois de terem experienciado abortos espontâneos e problemas na gravidez.

Recentemente foi notícia que uma ex-ministra da Justiça de Israel, que está à frente de um partido fundamentalista religioso, propõe que as mulheres sejam proibidas de se sentar nos bancos da frente dos autocarros, satisfazendo assim uma reivindicação dos partidos judeus ortodoxos. A líder extremista de direita, Ayelet Shaked, vai mesmo mais longe e defende a aplicação na Palestina de uma versão local do apartheid sul-africano, justificando que essa política de “desenvolvimento separado”, apesar de segregar populações, não constitui uma prática de exclusão. Chega a considerar arrogante a recusa de tal medida pelos judeus seculares, mas já acha natural e apropriado que a comunidade ultra-ortodoxa tente impor um estilo de vida medieval a toda a sociedade israelita. Para os fundamentalistas religiosos, “não há nenhum problema em enviar as mulheres para a parte de trás dos autocarros, em [obrigá-las a] ver um espectáculo através de uma cortina, em [fazê-las] desaparecer da sala de aulas, em impor-lhes o silêncio quando um homem está a falar”. A jornalista Zehava Galon em artigo de opinião publicado no Haaretz, lembra que “em tempos lutámos pelo direito de uma mulher ser piloto de combate, e agora lutamos para que os soldados não voltem as costas a uma oficial do sexo feminino quando ela lhes dirige a palavra”.

Infelizmente todas as religiões abraâmicas se revelam influenciadas pelo sistema patriarcal e por isso têm relegado a mulher para uma posição de menoridade ao longo da história. A hermenêutica dos textos sagrados tem sido constantemente enviesada por práticas religiosas formatadas para o masculino, que receiam olhar ainda hoje para ambos os sexos como iguais em dignidade e direitos.

A modernidade, através do primado da pessoa humana, do secularismo e do racionalismo veio colocar em causa muita desta mentalidade. Mas os movimentos sociais não fizeram menos, através da pílula anticoncepcional, ou das duas guerras mundiais do século XX. Nesses momentos as mulheres foram forçadas a sair de casa para trabalhar como operárias nas fábricas de armamento, munições, fardamento e rações de combate, substituindo-se assim aos homens, mobilizados para os teatros de guerra e já não quiseram voltar ao papel de fadas do lar.

A inteligência e o valor intrínseco das mulheres levou muitas delas a assinar obras de arte e literatura com nomes masculinos, fictícios, a fim de não serem lançadas para o caixote do lixo da história das artes e da cultura. E em meados do século IX em Roma até terá pontificado uma mulher, a papisa Joana, disfarçada de homem (Papa João).

Apesar de alguns escritos claramente misóginos atribuídos ao apóstolo Paulo, e hoje considerados pseudo-paulinos por alguns, a verdade é que o cristianismo é bastante claro em considerar homens e mulheres como iguais em dignidade intrínseca e perante Deus. Em carta-circular enviada às igrejas da Galácia, Paulo escreve claramente: “Porque todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus. Porque todos quantos fostes batizados em Cristo já vos revestistes de Cristo. Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fémea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gálatas 3:26-28).

E se formos analisar o exemplo do próprio Cristo, entendemos que não há qualquer margem exegética legítima para colocar a mulher abaixo do homem, tanto aos olhos de Deus como na Igreja.

José Brissos-Lino
JOSÉ BRISSOS-LINO
Fonte: VISÃO online, 28/8/19

O monstro

Toby Melville/ Getty Images

 

A solidão é uma espécie de monstro que persegue tenazmente milhares de idosos em Portugal. O problema principal deles nem sequer é os cuidados de saúde, mas a solidão a que os entregamos cada vez mais

Segundo a agência LUSA mais de 90% dos idosos seguidos nos cuidados de saúde primários em Portugal revelam algum grau de solidão, e um terço destes evidencia mesmo níveis graves, o que tem implicações nos referidos cuidados. A conclusão pode ler-se em estudo de investigadores do CINTESIS – Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, em parceria com a Administração Regional de Saúde do Norte (ARS-Norte).

Se nove em cada dez idosos em tratamento médico sofrem de solidão o país tem um problema sério em mãos e a sociedade está a falhar. A solidão provoca nos idosos um conjunto de problemas de saúde física, mental e emocional. Os estudos apontam para um excesso de medicação nesta faixa populacional, que se agrava nos níveis de solidão mais elevados. Segundo um estudo publicado na revista científica Family Medicine & Primary Care Review: “A solidão leva a um aumento do recurso aos serviços de saúde, como comprovamos através da relação desta com o consumo crónico de medicamentos, especialmente entre os idosos com mais de 80 anos de idade”. Por isso se torna tão importante compreender que a solidão nos idosos provoca maior somatização do seu sofrimento, potenciando assim o risco de sobremedicação.

A responsabilidade para com os idosos, em particular os mais vulneráveis, pertence a toda uma sociedade. A solidão, só por si, é uma vulnerabilidade nas idades avançadas como é bom de ver. Quando a pobreza e a baixa literacia se juntam a essa condição, então as coisas pioram de vez. Daí a necessidade de se desenvolverem estratégias de combate à situação, com vista a elevar os indicadores individuais de saúde. O estudo concluiu que “ter mais de 80 anos de idade, viver sozinho, possuir um baixo nível educacional (menos de nove anos), estar insatisfeito com os rendimentos e ter uma estrutura familiar disfuncional são os principais factores que se associam à solidão”.

Sempre que as sociedades se revelam pouco dinâmicas e a cidadania é tímida, a tentação é sempre remeter para o Estado todas as responsabilidades sociais. Mas o problema da solidão dos idosos começa nas famílias, que tantas vezes abandonam os idosos ou os ignoram na prática, mesmo quando não cortam formalmente os laços. Se não se faz um esforço em levá-los quando a família vai de férias, se não há interesse em dar-lhes apoio nos momentos e datas que lhes são mais sensíveis, se não há um telefonema, um visita ou outro sinal de preocupação para com o seu bem-estar e as suas necessidades, eles irão sentir-se descartáveis e sem valor.

Mas as igrejas e demais comunidades religiosas, as associações, colectividades e a vizinhança podem ser activos deste combate. Podem criar espaços e ocasiões de companhia e interacção social, promovendo o estímulo à participação na vida familiar, social e comunitária, assim como na ajuda a manter as rotinas diárias de actividade, que muitas vezes se perdem, gerando assim o isolamento que tende a potenciar a degradação pessoal expressa no relaxamento na alimentação, higiene ou vestuário.

É certo que compete ao Estado adoptar políticas que respondam às necessidades duma faixa populacional crescente no país, que promovam um estilo de vida activo depois da reforma e que estimulem o princípio da utilidade social dos idosos, o que terá reflexo directo na promoção da sua saúde. Há que promover o envolvimento no voluntariado social, nas universidades seniores, ou a manutenção da actividade profissional, mesmo em regime de tempo parcial ou até o empreendedorismo sénior.

O cristianismo desde sempre cuidou dos mais velhos, em especial das viúvas pobres. A prática da diaconia iniciou-se na comunidade cristã de Jerusalém nos primórdios da Igreja, através da provisão de alimento para as viúvas pobres (Actos 6:1-6), mas já a Torah recomendava o cuidado com os mais frágeis, incluindo o órfão, o estrangeiro e a viúva, nas prescrições da lei de Moisés, a começar pelos pais: “Honra a teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá” (Êxodo 20:12), e que S. Paulo diz aos Efésios ser o primeiro mandamento com promessa (6:2). Mas já o judaísmo do Antigo Testamento recomendava o respeito pelos anciãos, reforçado depois por S. Paulo: “Não repreendas asperamente o ancião, mas admoesta-o como a um pai” (1 Timóteo 5:1).

Aliás, todas as religiões em geral revelam um profundo respeito pelos idosos, do Islão às filosofias do Oriente. A falácia dos nossos tempos é que julgamos que o repositório de conhecimento que eles encarnam pode ser agora plenamente substituído pelos suportes de informação contemporâneos. Mas então, e a sabedoria de vida?

Há que regressar às origens da cultura cristã, bíblica e humanista.

José Brissos-Lino
JOSÉ BRISSOS-LINO
Fonte: VISÃO online, 21/8/19

Reflexões sobre uma greve

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Tanto os partidos que apoiam o governo como os da oposição estiveram mal, na generalidade, durante a greve dos motoristas.

O PSD andou de férias, reagiu tarde e a más horas e – a cereja em cima do bolo – veio depois dizer que os militares não podem sair dos quartéis. Curiosamente ninguém ouviu este partido criticar a intervenção dos militares aquando dos fogos. Os tiros nos pés são cada vez maiores.

O Bloco pode limpar as mãos à parede com a sua posição. Acabou de mostrar que não passa dum partido de protesto e não pode ser levado a sério.

O CDS queria aproveitar a crise para limitar o direito à greve. Não admira.

O PCP optou por se sentar em cima do muro e tentar ficar bem com deus e o diabo.

O governo fez o que tinha a fazer, com conta, peso e medida. Esteve bem.

A ANTRAM não podia fazer outra coisa senão recusar-se a negociar durante uma greve de duração ilimitada, como é evidente.

A FECTRANS fez bem em conquistar direitos para os seus associados à mesa das negociações, em vez de entrar em aventuras manhosas.

O sindicato dos motoristas de mercadorias desconvocou a greve e regressou ao diálogo a partir do momento em que percebeu as pardaladas, que já toda a gente tinha visto há muito, e se sentiu traído pela direcção do sindicato dos motoristas de matérias perigosas.

Este último sindicato fez tudo mal e por isso é a única parte a sair derrotada de cena.

Pretendeu parar o país, a pretexto dum diferendo negocial com a representação patronal, mas não conseguiu.

Declarou em plenário sindical que pretendia assim pressionar o governo, dada a proximidade das eleições, tornando uma luta sindical legítima numa luta político-partidária pouco clara, que perdeu.

Declarou publicamente que os seus associados não cumpririam os serviços mínimos decretados, e depois recuou.

Declarou publicamente que os seus associados não acatariam a requisição civil, e depois recuou. Em ambos os casos andou nas margens da legalidade.

Há duas semanas recusou liminarmente uma oferta de mediação proposta pelo governo.

Entrou em constantes contradições como, por exemplo, declarar repetidamente que o governo estava aliado à ANTRAM, mas depois veio pedir a esse mesmo governo que mediasse as partes, Como é bom de ver, só alguém independente poderia fazer tal mediação.

Agora vamos ao cerne da questão. Os motoristas têm razões de queixa das empregadoras? Claro que sim. Por isso devem lutar pelos seus direitos à mesa das negociações.

Só agora é que os motoristas têm razões de queixa? Claro que não. Os problemas vêm, de há muitos anos. Então o que sucedeu agora? O factor Pardal…

Sabe-se que o Ministério Público e a Ordem dos Advogados estão a investigar esta figura, tal como se sabe que há notícia de testemunhos muito pouco abonatórias sobre a sua conduta profissional, tanto por parte de cidadãos portugueses como de franceses. O espertalhão pôs a circular que seria provável candidato a deputado pelo Chega (foi desmentido) e pelo partido do Marinho e Pinto (não se sabe), além de se insinuar junto de Santana Lopes que o visitou em Aveiras de Cima. O que ele quer sei eu…

Os motoristas de matérias perigosas, tal como os de mercadorias e todos os outros, merecem condições de trabalho e remuneração dignas, tal como todos os portugueses. O que eles não merecem é gente desta à frente de sindicatos que os representem. Nem os portugueses merecem a sua vida quotidiana e profissional, a economia do país ou mesmo as férias a que têm direito destruídas por acções irresponsáveis dum iluminado.

E já agora, um esclarecimento, à conta dos cínicos. Na família não tenho motoristas profissionais, nem empregadores de motoristas, nem pessoas ligadas de alguma forma ao governo, aos partidos, às gasolineiras ou às petrolíferas. Assim como não precisei de abastecer combustível durante toda a greve. Estou perfeitamente à vontade para dizer o que penso sobre a matéria.

B. Lino

 

 

A teologia das pedras

Getty Images

A tentação de lançar pedras sobre os outros é sempre maior do que a de nos colocarmos em frente a um espelho. Mas, cada vez que lançamos uma pedra contra alguém, no fundo estamos a magoar-nos a nós mesmos

Um dos episódios mais impressionantes do Evangelho de João (capítulo 8) é a cena do Templo de Jerusalém onde um grupo de homens surge de rompante arrastando à força uma pobre mulher.

Desde logo a tradição chama à criatura “mulher adúltera” de forma abusiva. O texto de S. João não permite tal classificação. Apenas conhecemos o testemunho dos seus acusadores. A mulher nem sequer foi ouvida enquanto arguida, talvez porque Jesus não tinha vocação de magistrado, nem a casa de Deus deve ser um local de condenação, mas de amor, aceitação e inclusão: “Porque Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele” (João 3:17).

Mas é estranho que o homem que terá sido encontrado com ela não surja na estória. A lei de Moisés – que escribas e fariseus tanto prezavam – determinava que “Também o homem que adulterar com a mulher de outro, havendo adulterado com a mulher do seu próximo, certamente morrerá o adúltero e a adúltera” (Levítico 20:10). A verdade é que o homem nunca aparece, talvez porque a sociedade patriarcal é o que é.

Ninguém conhece a biografia da personagem feminina. Seria uma sedutora ou teria sido seduzida? Era adúltera convicta ou terá apenas caído por uma vez em momento de fraqueza? Terá sido seduzida por alguém a quem os acusadores pagaram? Seria vítima de falso testemunho, numa sociedade em que uma mulher sozinha nem sequer podia requerer justiça junto dum juiz?

O primeiro erro destes religiosos foi pretender perturbar o ensino que Jesus de Nazaré ministrava ao povo que o procurou, sobretudo em pleno templo de Jerusalém, o centro de adoração do Judaísmo, território sagrado demais para este dito profeta, indigno e blasfemo, como eles pensavam. O seu segundo erro foi utilizar uma mulher indefesa apenas como pretexto para tentar encurralar o homem que propunha uma mensagem de amor, em clara contra-corrente cultural e religiosa, confrontando-o com a dureza da lei mosaica. O seu terceiro erro foi a insistência (“E, como insistissem…”).

A teologia do amor confunde sempre os “teólogos” das pedras. Só que aquelas pedras de facto não eram destinadas à mulher mas ao próprio Jesus. Se a quisessem lapidar teriam feito isso antes de entrar no templo ou depois de a levarem perante a autoridade religiosa que determinaria a pena. A sua decepção não foi poupar a pobre mulher, foi antes não conseguir que os seus argumentos triunfassem de modo a apedrejar aquele homem que desafiava o sistema religioso estabelecido claramente corrupto e hipócrita. O que eles queriam mesmo era apedrejar aquele nazareno que ousava desafiar o sistema estabelecido: “Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?” (1:46).

A resposta do mestre Jesus foi eloquente. Limitou-se a colocar um espelho à sua frente, virado para os acusadores que o interpelavam, onde eles não gostaram nada de ver a sua imagem moral e ética reflectida: “Aquele que de entre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela” (7). Conta o episódio que eles, confrontados com a sua consciência: “saíram um a um, a começar pelos mais velhos até aos últimos”. Ou seja, os mais vividos e experientes foram os primeiros a desistir do seu intento.

O que vemos ainda hoje é a mesma inflexibilidade, a mesma pulsão condenatória, a mesma procura de bodes expiatórios por parte dos sistemas religiosos. Normalmente os fariseus dos nossos dias tendem a bajular o poder e a discriminar as minorias e os mais fracos, que não se podem defender, tal como aquela mulher. De uma forma ou de outra alguns líderes políticos procuram hoje o apoio das religiões para imporem a sua agenda populista, que exclui mais do que inclui. Não é novidade. Hitler começou por fazê-lo. Putin fá-lo ainda hoje, tal como Trump, Bolsonaro, Salvini ou Maduro, cada um à sua maneira.

Os “teólogos” das pedras fazem por ignorar que a pedra que têm na mão, pronta a atirar aos outros, é igual à pedra que têm no lugar do coração: “E lhes darei um só coração, e um espírito novo porei dentro deles; e tirarei da sua carne o coração de pedra, e lhes darei um coração de carne” (Ezequiel 11:19).

E um coração de pedra não bate, por si nem pelos outros. Limita-se a existir.

José Brissos-Lino
JOSÉ BRISSOS-LINO
Fonte: VISÃO online, 14/8/19

 

Certo Pardal

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Certo Pardal manganão

Com Maserati por crista

Pousando num camião

Se disfarçou motorista

 

Piava de forma mansa

Para atrair os ingénuos

Antecipando festança

Ao rasgar certos convénios

 

E é então que o pessoal

Farto de tal vilanagem

Não estando concordante

 

Com a greve e a paragem

Cortou o pio ao pedante

E depenou o Pardal!

 

12/8/19

Manuel Sadino

Conversa à volta da fogueira

Horacio Villalobos/ Getty Images

Todos concordam que os incêndios florestais são uma calamidade em qualquer parte do mundo. Mas o que poucos ousam dizer em voz alta é que são uma calamidade inevitável e que, por essa razão, há que aprender a viver com eles

Sempre que se verifica a regra dos três trintas é certo e sabido que os fogos florestais estão a caminho: mais de 30 graus de temperatura, ventos a mais de 30 quilómetros por hora e humidade abaixo dos 30 por cento. A conjugação é fatal.

Antes de mais importa que nos consciencializemos para o facto de que os fogos florestais são uma inevitabilidade do nosso tempo. Resultam essencialmente das alterações climáticas acentuadas que o planeta tem vindo a sofrer nas últimas décadas. Não é só o sul da Europa, a Califórnia ou a Austrália que ardem. De acordo com os cientistas e as imagens de satélite recolhidas até o Ártico está a ser pasto das chamas, coisa que já não sucedia há 10 mil anos, com mais de 100 frentes activas entre as regiões do Alasca, Sibéria e Gronelândia, com libertação excepcional de níveis de CO2.

Esta nova e dura realidade exige mudanças radicais de comportamento das populações no sentido da adopção de boas práticas. Por exemplo, a lei portuguesa proíbe que se façam queimadas no campo durante os meses de maior calor, mas sabemos como as pessoas gostam de contornar a lei. Ao contrário do que muitos pensam e dizem, o fogo posto não estará na origem da maior parte dos fogos florestais no país, mas sim os comportamentos negligentes. É o que pensa Patrícia Gaspar, 2º Comandante Operacional Nacional da ANPC, quando diz que a mão criminosa é apenas residual face aos comportamentos negligentes, “que representam mais de 90 por cento de todos os fogos”.

Não há hipótese, temos mesmo que nos adaptar a um planeta diferente através da mudança radical de comportamentos, como acabar com o excesso de matéria plástica que está a entupir os oceanos ou a premente necessidade de reciclar os lixos e as águas, reduzindo os resíduos.

Escrevia a directora da VISÃO há dias: “É tentador encontrar um culpado, e o culpado imediato nunca é o pobre vizinho que não limpou os terrenos nem a câmara municipal que não acondicionou as matas. Na cabeça das pessoas, o culpado é o Estado, essa entidade indistinta que, para muitos, falha em todas as frentes: na limpeza, no planeamento e no combate. E, na cabeça das pessoas, o Estado tem um rosto, o do Governo e o primeiro-ministro em funções.” De facto, as conversas de café do costume – incluindo as redes sociais, que funcionam como conversas de café contemporâneas – giram à volta da procura de um bode expiatório, seja o incendiário, o madeireiro, ou o promotor imobiliário, mas, em última análise será sempre a ANPC, o ministro da Administração Interna, o governo e o primeiro-ministro.

Recentemente a jornalista Daniela Santiago, correspondente da RTP em Espanha, teve a coragem de propor “um estudo académico, aprofundado, sobre os efeitos da cobertura mediática (TV) dos incêndios em Portugal. Especialmente chamas atrás de chamas.” Argumentava que no país vizinho todos os acessos são vedados, pelo que os jornalistas não passam do posto de comando. Porém, salvaguardava que não tinha opinião acabada sobre o assunto (antes que os colegas a trucidassem…), propondo apenas uma reflexão. Os incêndios florestais são uma mina para as televisões na silly season – juntamente com as notícias de transferências futebolísticas – e todos nos lembramos de como uma certa jornalista se fez filmar ao lado dum cadáver nos fogos de 2017…

Face aos incêndios florestais a atitude de boa parte dos cidadãos oscila entre a necessidade de encontrar um bode expiatório – na linha da velha estória da culpa que enforma parte da teologia cristã – e o desejo de voyeurismo. Sim, porque se o público não alimentasse as horas infinitas de transmissão dos teatros de operações a coisa acabava num instante.

Paulo de Carvalho popularizou a canção “Meninos do Huambo” (com música de Rui Mingas e letra de Manuel Rui Monteiro), que fala das crianças angolanas à volta da fogueira a sonhar com a construção do seu país. Mas neste caso as conversas à volta dos incêndios são fatalmente destrutivas.

Só que há fogos piores do que os florestais. Pelo menos é o que diz o apóstolo Tiago: “Assim também a língua é um pequeno membro, e gloria-se de grandes coisas. Vede quão grande bosque um pequeno fogo incendeia. A língua também é um fogo; como mundo de iniquidade, a língua está posta entre os nossos membros, e contamina todo o corpo, e inflama o curso da natureza, e é inflamada pelo inferno” (3:5-6).

E em tempo de pré-campanha eleitoral, se os fogos dão sempre jeito, as línguas em brasa ainda dão mais.

José Brissos-Lino
JOSÉ BRISSOS-LINO
Fonte: VISÃO online, 7/8/19

 

A obra de arte de Alan Turing

Estátua de Alan Turing, em Manchester. Christopher Furlong/ Getty Images

 

 

Foram os resquícios da mentalidade vitoriana que levaram a Inglaterra a sacrificar cruelmente um dos seus maiores. E um certo rasto puritano que pontificou durante séculos em terras de Sua Majestade

Em 1952 a homossexualidade ainda era proibida no país, o que levou o cientista Alan Turing a ser processado, aos quarenta anos de idade, e condenado por “indecência grosseira”. Entre ficar preso ou submeter-se à castração química, à força de estrogénio, optou por esta, mas foi igualmente banido da vida académica, tendo sido ostracizado pela sociedade e pela academia. Impedido de viajar, leccionar ou fazer investigação, não aguentou e passados dois anos suicidou-se, comendo uma maçã na qual injectara previamente cianeto.

A perseguição e tortura que sofreu não foram diferentes das de qualquer outro cidadão britânico homossexual. Apesar disso, esta foi a mente brilhante que conseguiu decifrar o complicado código nazi Enigma, permitindo que as tropas aliadas pudessem interceptar as mensagens alemãs e localizar os respectivos submarinos durante a Batalha do Atlântico, nos anos da II Guerra Mundial. Estima-se que a sua acção tenha encurtado o conflito em dois anos e poupado 14 milhões de vidas humanas.

De resto, foi a equipa de Turing que conseguiu desmascarar um espião português ao serviço dos alemães – Gastão Crawford de Freitas Ferraz, natural do Funchal, e funcionário da Marconi – aliciado em Lisboa a troco de 1500 escudos mensais, quatro vezes mais do que o salário médio em Portugal na altura, e que se alistou no navio-hospital Gil Eanes como radiotelegrafista.

Segundo José António Barreiros, que tem obra publicada sobre a espionagem na II Guerra Mundial: “A sua localização foi concebida graças à radio-escuta das comunicações alemãs, que apesar de criptografadas pela máquina Enigma, foram descodificadas em Bletchley Park por uma equipa de que o mais proeminente elemento foi Alan Turing. Tratava-se de informação de tal modo secreta que a sua fonte era indicada nos documentos que se produzissem como ULTRA”. Alertados os serviços secretos britânicos, a Royal Navy deteve o espião português em alto mar e fê-lo desembarcar em Freetown (Canadá) a 1 de Novembro de 1942, desconhecendo-se o seu destino posterior.

Só em 1967 foram descriminalizadas as relações entre homens adultos em Inglaterra e no País de Gales, a que se seguiu a Escócia, em 1980, e a Irlanda do Norte em 1982.

Mark Carney, actual governador do Banco de Inglaterra, referiu o trabalho do cientista: “Alan Turing foi um excelente matemático cujo trabalho teve um enorme impacto na forma como hoje vivemos. Como pai da ciência da computação e inteligência artificial, bem como herói de guerra, as contribuições de Alan Turing foram muito variadas e inovadoras. É um gigante em cujos ombros estamos tantos”. De facto Turing desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento dos primeiros computadores, tanto no âmbito do Laboratório Nacional de Física como depois na Universidade de Manchester, sendo por isso considerado o grande pioneiro da computação moderna.

O puritanismo marcou a Inglaterra durante séculos, e a mentalidade vitoriana permaneceu presente na sociedade até ao século vinte. A supremacia europeia, a pulsão imperial e uma religião ao serviço do poder moldaram toda uma sociedade, que só a Modernidade veio questionar.

A mais do que justa reabilitação de Alan Turing chegou apenas em 2014 através dum “perdão real”, sendo agora o matemático um herói oficial da coroa britânica. A mesma Inglaterra que o amaldiçoou vai andar no bolso com ele, a partir de 2021 nas novas notas de 50 libras, que exibirão o seu rosto e uma frase que revela a sua genialidade: “Esta é apenas uma antecipação do que está por vir, e apenas a sombra do que será” (retirada da entrevista concedida ao The Times em 1949). A justificação do decisor desta escolha histórica é o desejo e a necessidade de representar “todos os aspectos da diversidade dentro do país, de raça, religião, credo, orientação sexual, deficiência e além.”

Até agora só o símbolo da tecnológica Apple, uma maçã com um pedaço a menos, homenageava Alan Turing como o pai da informática, numa referência clara à sua morte, e mais recentemente a obra de Andrew Hodges Alan Turing: The Enigma, entretanto adaptada ao cinema em 2014 e que ganhou o Óscar de Melhor Argumento Adaptado.

Zygmunt Bauman (A Arte da Vida, Lisboa: Relógio D´Água, 2017) diz com razão: “As nossas vidas, quer o saibamos ou não e quer o saudemos ou lamentemos, são obras de arte”. Foi o caso de Alan Turing, apesar de as pinceladas negras da perseguição e da tragédia fazerem parte do quadro.

José Brissos-Lino
JOSÉ BRISSOS-LINO
Fonte: VISÃO online, 31/7/19

Novo livro de poemas de José Brissos-Lino, em versão digital

Ânsia de eternidade caP ok

Pode fazer o download gratuito do livro pelo site Google Drive, CLIQUE AQUI.

 

A presente obra reúne um conjunto de pequenos poemas dispersos sobre
temática espiritual e religiosa, escritos ao longo de alguns anos e ainda não
publicados em livro. 

As questões da fé e da eternidade, a revisitação de figuras, imagens e episódios bíblicos, em particular os tocantes às temáticas da transcendência e da relação com Deus, pairam claramente sobre a paisagem poética aqui apresentada, assim como alguns exercícios livres de meditação ou elevação (chamemos-lhe assim).

No fundo trata-se do discurso poético de um homem de fé, desenvolvido mais em jeito de reflexão pessoal. E o que é a Poesia senão isso?

Como bem dizia Miguel de Unamuno “acreditar em Deus é antes de mais e sobretudo querer que ele exista” (Do Sentimento Trágico da Vida, 1913).

É por isso que esta obra pode constituir inspiração significativa para quem for capaz de a saber ler, e elevação espiritual para quem aspira à eternidade e sente que ela está a passar por aqui.”

(da Abertura)

Bolsonaro cristão, Bolsonaro pagão

b

 

Há quem defenda que o governo de Bolsonaro, apesar de se afirmar cristão, em boa parte, inscreve-se todos os dias em campo oposto à respectiva ética. As comparações com a personagem Donald Trump são inevitáveis

A plataforma política que levou Bolsonaro ao Palácio do Planalto incluiu um vasto suporte entre evangélicos em geral e neopentecostais em particular, com promessas de proteger e apoiar a causa religiosa.

Joel Pinheiro da Fonseca diz na revista “Exame”: “Em toda oportunidade que tem, diz que embora o Estado seja laico, ele próprio é cristão. Seu lema de campanha incluía Deus. Ele já fez menção de que a religião evangélica será um critério para sua indicação de ministro no Supremo Tribunal Federal. Fez questão de participar da Marcha para Jesus no mês passado. Contudo, quando olhamos para suas propostas e valores, a impressão é bem diferente.”

Sabemos que a sua vitória eleitoral ocorreu na sequência de um fenómeno de rejeição por parte do eleitorado dos actores políticos em geral e do Partido dos Trabalhadores (PT) em particular, devido à extrema corrupção, aos altos níveis de violência e à imposição duma agenda de temas fracturantes. Foi isso que levou ao poder um velho deputado como Bolsonaro, sem qualquer currículo parlamentar ou cívico, a não ser protagonizar as ideias da direita a roçar o extremo político.

De facto, bastam alguns indicadores para entender rapidamente que o seu discurso religioso não confere com a acção política. Se a fé cristã prega o perdão dos pecados e a redenção dos homens, Bolsonaro propõe e exalta a execução dos criminosos. Se o evangelho proclama a dignidade da pessoa humana, Bolsonaro defende publicamente a tortura e a execução sumária. Se o cristianismo prega uma mensagem universal e a missionação, Bolsonaro coloca-se como inimigo dos indígenas e procura submetê-los aos interesses da expansão agrária. Se Jesus frisou o cuidado pelos pobres, o governo de Bolsonaro não parece interessado nas políticas sociais. Se o cristianismo fala de paz, Bolsonaro propõe a difusão das armas.

Mas da parte das lideranças cristãs o panorama não é melhor. Recentemente uma vintena de deputados da Frente Parlamentar Evangélica votou favoravelmente a reforma da Previdência, que obriga os trabalhadores brasileiros a trabalhar mais para se aposentar, mas não foram capazes de prescindir das suas próprias mordomias nessa matéria. Ou seja, aprovaram uma lei punitiva para a população em geral mas puseram-se de fora, conservando os privilégios de que tinham em mãos. Já não bastava que parte dos deputados evangélicos tenham sido considerados dos mais corruptos nos tempos do famigerado Mensalão…

Outro exemplo. O pastor Marco Feliciano, chegou-se rapidamente à frente para afirmar publicamente que gostaria de concorrer à vice-presidência do Brasil ao lado de Bolsonaro, em 2022, manifestando assim a sua indisfarçável e desmedida ambição política. Agora se compreende melhor a campanha suja que vem fazendo contra o actual vice, o general Mourão. Aliás, os líderes neopentecostais têm vindo a manifestar ao longo das últimas décadas uma preocupante sede de poder. Apoiaram abertamente candidatos e presidentes de quadrantes políticos tão diferentes como Lula, Dilma, Temer e agora Bolsonaro. No fundo eles não apoiam pessoas, políticas, programas ou ideologias. São apenas atraídos pelo poder como as traças pela luz.

Mas a cereja em cima do bolo será talvez a decisão já anunciada publicamente por Jair Bolsonaro de designar o seu filho Eduardo para o cargo de embaixador do país nos EUA. E a justificação para este acto de puro nepotismo é hilariante: “(Eduardo) é amigo dos filhos do Donald Trump, fala inglês e espanhol, tem uma vivência muito grande do mundo”, pelo que “poderia ser uma pessoa adequada e daria conta do recado perfeitamente”.

A personagem tem procurado capitalizar o apoio dos evangélicos mas não revela qualquer identificação séria com a ética cristã, nem sequer na aparência. Calcula-se que produza em média uma afirmação falsa ou distorcida por dia. Alguém lembrou, a propósito, as palavras de Jesus de Nazaré: “Nem todo o que me diz: ‘Senhor, Senhor!’ entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus.” (Mateus 7:21). Já S. Paulo advertia o jovem Timóteo sobre aqueles que, tendo aparência de piedade, todavia negavam a eficácia dela. E concluía: “Destes afasta-te” (2 Timóteo 3:5).

Ao contrário de qualquer político experiente, Bolsonaro, uma vez eleito, não se posicionou como presidente de todos os brasileiros. Pelo contrário, continuou a cavar o fosso entre direita e esquerda. Assiste-se assim ao extremar de posições e ao desaparecimento do centro político. Se alguém critica Bolsonaro é taxado de comunista ou, no mínimo, de lulista e recomenda-se que vá para Cuba ou Venezuela. Se apoia o presidente é apelidado de fascista.

Assim é difícil construir qualquer coisa.

José Brissos-Lino
JOSÉ BRISSOS-LINO
Fonte: VISÃO online, 24/7/19

Estarão os árabes a virar as costas à religião?

arab

 

O senso comum no Ocidente é que a religião é inamovível no mundo árabe por ser entranhadamente cultural. Mas há notórios sinais de refluxo.

Segundo um estudo realizado no Médio Oriente e Norte de África pela Araba Barometer (rede de investigação baseada na Universidade de Princeton) e citado pela BBC, os árabes estão a afirmar-se cada vez mais como não-religiosos. Estarão mesmo os árabes a virar as costas à religião? A investigação – que não incluiu os estados árabes do Golfo, por recusarem o acesso aos investigadores – avaliou onze países, concluindo que o abandono da identificação religiosa é mais acentuado no Norte de África, em especial na Tunísia, Líbia e Marrocos. Devido à guerra não foi possível desenvolver a recolha de dados na Síria.

No curto período de cinco anos, e por contraste com os dados recolhidos em 2013, o abandono da identificação religiosa mais do que duplicou na Tunísia, Líbia e Argélia (Tunísia: de 15% para mais de 30%; Líbia: de pouco mais de 10% para cerca de 25%; Argélia: de 7% para 15%). Embora com variações mais baixas, Marrocos e Egipto também seguiram a tendência de duplicação da percentagem de descrença. A excepção é o Iémen, que contrariou a tendência ao ver aumentar a filiação religiosa no mesmo período. Já no Líbano, Iraque e territórios palestinianos a variação é insignificante.

O objectivo desta investigação era consultar as populações árabes relativamente a uma ampla gama de questões como filiação religiosa, condição feminina, migrações, segurança e sexualidade. A população consultada foi na ordem dos 25.000 indivíduos em 10 países e territórios palestinianos entre finais de 2018 e a Primavera deste ano. Os dados recolhidos mostraram que desde 2013, o número de pessoas em toda a região que se identificam como “não religiosas” subiu de 8% para 13%, sendo predominante nos menores de 30 anos.

Quanto ao direito das mulheres na vida pública, a maioria dos inquiridos declarou apoiar a eventualidade de uma mulher se tornar primeira-ministra ou presidente, à excepção da Argélia, onde menos de metade aceitou a ideia. Já quanto à relação familiar a maioria – incluindo as mulheres – atribui aos maridos a palavra final nas decisões, excepto em Marrocos.

A metodologia utilizada incluiu entrevistas de 45 minutos, em grande parte baseadas em tablets, conduzidas por investigadores a indivíduos em espaços privados.

A inevitável ocidentalização das sociedades árabes pela mão dos fluxos migratórios, da globalização e da universalização dos meios de comunicação social, sem esquecer a internet e as redes sociais, terão dado certamente o seu contributo para a presente tendência caracterizada por um pendor mais secular e laico. Por outro lado, a demografia nestes países resulta em quadros populacionais de idades mais baixas, dados os níveis de natalidade, e os jovens manifestam sempre abertura ao novo, apelo pela aventura e atracção pelo desconhecido, sendo menos fiéis à transmissão dos costumes e tradições pelas gerações anteriores.

O nível de vida na Europa e Estados Unidos é muito mais apelativo, a oferta cultural diversificada, assim como os altos níveis de conforto quando comparados com tais sociedades, bem como as possibilidades do lazer. O facto é que aumentou o número de pessoas que partem para os Estados Unidos e, embora a Europa seja menos popular do que era, continua a ser a melhor escolha para as pessoas que pensam deixar a região. Em todos os países e territórios do estudo se concluiu que pelo menos uma em cada cinco pessoas pensava emigrar, essencialmente por razões económicas, mas no Sudão esse desejo representa metade da população. A propaganda oficial contra Israel, a América e o Ocidente em geral, em boa parte desses países e territórios, não consegue anular a atracção que tais destinos exercem na juventude.

Apesar de tudo ainda se conservam laivos de mentalidade medieval em parte da população, em particular em sete destes países onde o conceito de homicídio de honra, isto é, matar alguém por supostamente ter desonrado a família, é considerado mais aceitável do que a homossexualidade.

Embora se tenha acabado por revelar quase um fiasco político, a verdade é que a chamada “primavera árabe” funcionou como uma janela de esperança para as camadas mais jovens, que assumiram serem possíveis outros amanhãs nunca antes por eles experimentados. Sobretudo terão integrado que existe uma outra forma de organização social que dispensa os rígidos ditames religiosos impostos às populações, remetendo assim a religião para o domínio das escolhas e opções individuais.

José Brissos-Lino
Fonte: VISÃO online, 17/7/19

Ainda há alemães com memória, graças a Deus

Deutschland Deutscher Evangelischer Kirchentag in Dortmund - Segen zur Nacht (picture-alliance/dpa/B. Thissen)

Participantes do Dia da Igreja Protestante em Dortmund

 

Este ano a Alemanha protestante vetou a participação de populistas de direita no Dia da Igreja Protestante Alemã. Convém não perder a memória.

A celebração costuma durar uma semana e reúne habitualmente líderes espirituais destacados, nacionais e estrangeiros, como políticos, intelectuais, filantropos e estrelas pop, de modo a que os eventos sejam socialmente relevantes. Em anos anteriores estes encontros ficaram marcados por pedidos expressos de algumas mudanças políticas e sociais. No ano 2000 a convenção pressionou o governo a eliminar a dívida de países pobres, e em 2017 o ex-presidente Barack Obama participou nos trabalhos.

Os encontros têm uma componente política, que inclui centenas de fóruns nos quais são debatidas questões relevantes, mas também concertos de música gospel e prática de desportos. Este 37º. Encontro da Igreja Protestante Alemã (Deutsche Evangelische Kirchentag), juntou mais de cem mil visitantes em Dortmund e na região do Ruhr sob o lema “Confiança” e a classe política foi convidada a participar nas discussões, incluindo membros do governo federal, mas sempre a título pessoal. A própria chanceler Angela Merkel é filha de um pastor luterano da antiga Alemanha de Leste. Porém, os populistas do Alternativa para a Alemanha (AfD) não foram convidados, apesar de constituírem hoje a terceira maior força do Bundestag, porque a reunião deste ano tinha como objectivo debater a solidariedade nacional e internacional, as mudanças climáticas, o nacionalismo, o racismo e a xenofobia. Contentar-se-ão em apresentar um pequeno stand do partido no centro da cidade.

Um dos promotores adiantou: “Teremos que deixar claro de novo e de novo que esse é um caminho errado. Precisamos de confiança para podermos viver juntos na Europa – na verdade, em todo este planeta – em vez de nos isolarmos, caso contrário a humanidade não sobreviverá”. Como afirmou Hans Leyendecker, presidente do evento: “Há muitas coisas que são como o ácido, que devoram lentamente a nossa confiança e minam a coesão social”.

Este grande evento bianual iniciado em 1949 foi criado por Reinold von Thadden-Trieglaff, membro da Igreja Confessante (Bekennende Kirche) que resistiu ao regime nazi e presidiu ao mesmo até 1964. Talvez o maior nome da Igreja Confessante seja o teólogo e pastor luterano Dietrich Bonhoeffer, um dos seus fundadores, que pagou com a vida a temeridade de regressar a Berlim em pleno ocaso do regime nazi apenas por querer servir o seu país, então dirigido por um louco. Foi preso, internado num campo de concentração e enforcado poucos dias antes da libertação.

Recorde-se que em 1933 o regime nazi forçou as Igrejas a entrarem para a Igreja Protestante do Reich  e apoiar a ideologia nazi. Em Setembro desse mesmo ano foi criada na clandestinidade a Igreja Confessante, pelos que não suportavam a loucura hitleriana nem o subjacente racismo ideológico. Em 1934 estruturou-se, a partir duma Declaração Teológica escrita essencialmente por Karl Barth e ratificada no Sínodo de Barmen. Martin Niemoller assumiu a liderança do movimento, tendo sido preso, julgado e enviado para um campo de concentração, tal como muitos outros pastores protestantes, além do confisco dos bens do movimento.

Boa parte dos luteranos alemães apoiou o nazismo. O forte Movimento Cristão Alemão (Deutsche Christen) estabeleceu por alvo articular a fé cristã com o nacional-socialismo, criando assim um nacional-socialismo protestante, ao considerar Hitler um complemento da Reforma, excomungar os judeus baptizados e excluir o Antigo Testamento das Escrituras.

Na recente sessão de abertura do novo Parlamento Europeu em Estrasburgo os ingleses do Partido do Brexit assumiram exactamente a mesma atitude dos acólitos de Hitler, os deputados do partido nacional-socialista no Reichtag em Berlim, neste caso virando as costas durante a execução instrumental do hino da União Europeia. Uma atitude que diz tudo sobre os companheiros de Nigel Farage e o populismo de direita que se transformou em moda política nos últimos tempos. Dir-me-ão que se trata duma comparação forçada. Bem sei que se trata de situações diferentes, mas o que se regista é a mesmíssima atitude de desprezo pela função parlamentar, a qual, em regime de eleições livres, é sempre uma garantia de convivência e prática democrática e um travão às ditaduras de pensamento único.

Ainda no ano passado o dirigente da extrema-direita alemã (AfD) Alexander Gaulanda, comparou o nazismo a um “excremento de pássaro” num milénio alemão glorioso, desvalorizando assim com leviandade os horrores provocados por aquele estado totalitário fascista na história europeia, que chegou a matar 15 mil judeus por dia. Tal embuste foi prontamente condenado pelo presidente da Alemanha. Convém, portanto, que a Igreja da Alemanha não esqueça o seu passado religioso e político. Afinal, ainda nem passaram noventa anos sobre o grande desvario.

 

nazis

José Brissos-Lino
Fonte: VISÃO online, 10/7/19

 

Viver Poesia

Getty Images

 

“Si acaricio demasiado mis palabras
no tendré tiempo
de besar a mi hijo
ni de hablarle con mis ojos
ni con mis brazos de nido
Por eso callo
y en vez de escribir poemas
vivo poesía.”

Luis Cruz-Villalobos, ‘Poesía Pequeña y en Poemas’ (1996)

 

Ser pai não é melhor do que ser poeta. Ou antes, é uma outra forma de o ser, porventura mais genuína e útil. Pode-se fazer Poesia escrevendo-a, mas o melhor de tudo ainda é vivê-la.

Creio que a ideia do meu colega e poeta chileno Luís Cruz-Villalobos é que, mais importante do que escrever poesia é vivê-la. Poderíamos dizer o mesmo das artes em geral. Mais importante do que produzir arte será viver de forma harmoniosa, o que não é, de todo, o que nos relata a história da arte, já que muitos dos génios da música e da pintura, por exemplo, viveram vidas miseráveis, apesar de terem produzido obras-primas ainda hoje admiradas em todo o mundo.

Há quem teorize que o sofrimento é o verdadeiro catalisador da capacidade artística, o que me parece uma perspectiva muito discutível, demasiado negativa e eivada de fatalismo. Por outro lado, se os estados de alma influenciam certamente o autor do produto cultural de forma a deixar esse rasto nas suas obras, também é verdade que sem engenho, dedicação, esforço e trabalho não há inspiração nem capacidade realizadora que resistam.

O que o trecho do poema em epígrafe sublinha é que a relação humana, neste caso a parental, não pode ser substituída pela arte ou pela literatura. Ser pai é uma função muito mais bela e importante do que ser poeta. Mas tal princípio aplica-se igualmente a qualquer outra actividade humana, por mais nobre que seja. Quantos profissionais liberais, altos quadros de empresas e até líderes religiosos perderam a família, e sobretudo os filhos, por se dedicarem excessivamente à sua actividade?

Beijar um filho pequeno não é substituível pelo acto de lhe colocar comida na mesa. Nem “falar-lhe com os olhos”, nem tão pouco apertá-los nos braços fazendo-o sentir seguro no ninho. Digamos que providenciar sustento aos filhos é uma obrigação e um dever, mas expressar-lhes ternura e fazê-los sentir seguros e amados é qualquer coisa que se situa muito acima da contabilidade dos direitos e deveres. Remete para outra dimensão, que ultrapassa a mera parentalidade para entrar numa verdadeira relação de paternidade.

A paternidade requer proximidade – mesmo quando se está longe –, mas também afecto, atenção, tempo e preocupação com a formação do carácter, isto é a transmissão de princípios de vida e valores sãos, que façam os nossos filhos respeitarem-se a si mesmos e aos outros em qualquer tipo de relações que venham a desenvolver ao longo da vida.

Já Platão dizia: “Não deverão gerar filhos quem não quer dar-se ao trabalho de criá-los e educá-los.” E como não é possível criar bem um filho sem amor, quem não tem amor para dar a um filho não devia tê-lo trazido ao mundo, pois cada criança tem o direito, a expectativa natural e a necessidade de se sentir amada. Os filhos não são troféus nem objectos decorativos numa relação, nem tão pouco a mera satisfação e realização dos avós. São seres humanos, têm vida, personalidade e sensibilidade próprias e únicas.

Shakespeare sabia disso: “É um homem sábio o que conhece o seu próprio filho.” Os nossos filhos não são comparáveis a outras pessoas, necessariamente diferentes deles, mesmo que comunguem da mesma idade ou outras características semelhantes. Goethe pensava que não se devem moldar os filhos de acordo com os nossos sentimentos: “devemos tê-los e amá-los do modo como nos foram dados por Deus.”

Os pais de hoje parecem mais interessados em submeter os filhos a uma permanente tensão competitiva do que em senti-los e sabê-los felizes. Já não basta, como diz Galopim de Carvalho, que a escola esteja “a amestrar crianças para passarem nos exames”, como se isso fosse coisa mais importante do que deixá-los ser felizes, ensiná-los a lutar pelos seus sonhos e ideais, e desenvolverem as competências mais adequadas ao seu perfil, encontrando assim a sua vocação na vida.

O amor não é propriamente um dever. É muito mais do que isso. Segundo Steve Jobs ter filhos muda a maneira como vemos as coisas: “nascemos, vivemos por um breve instante e morremos.”

E no intervalo, resta-nos viver Poesia.

José Brissos-Lino
Fonte: VISÃO online, 3/7/19

 

Vaticano: “a última corte absolutista da Europa”

ANDREAS SOLARO/Getty Images

 

Francisco voltou a surpreender com a sua franqueza, desta vez ao referir-se ao sistema vaticanista de governo da igreja católica, apesar das conhecidas críticas às “doenças da Cúria”.

Segundo o portal Sete Margens, em entrevista à Televisa, quando “Valentina Alazraki lhe pergunta sobre a eventual contradição entre ‘uma Igreja em crise e um Papa que goza de popularidade’, o Papa Bergoglio responde com uma dura crítica à forma de governo que domina ainda o Vaticano.” Chega mesmo a classificar a sede do poder católico-romano como “última corte europeia de uma monarquia absoluta.”

Embora o essencial da entrevista seja sobre temáticas como o drama dos refugiados – recorde-se que mais de 70 milhões de pessoas sobrevivem hoje deslocadas por esse mundo fora, longe das suas casas ou países, devido a guerras e perseguições, o dobro de há 20 anos – o muro de Trump, o Islão, os jovens, a violência, a pobreza, os jovens e a condição feminina.

Francisco acredita que “a Igreja está a mudar” e confia que os cardeais desejem de facto uma reforma da instituição, falando mesmo em “crise de crescimento”. Aponta para algumas realidades da Igreja que, essas sim, estão em crise e precisam de desaparecer: “Sejamos conscientes. O Estado da Cidade do Vaticano como forma de governo, a Cúria, o que seja, é a última corte europeia de uma monarquia absoluta. A última. As demais já são monarquias constitucionais, a corte dilui-se, mas aqui há estruturas de corte que são o que tem de acabar.”

O sistema eclesial dominante parece obsoleto e está na base do grande e recorrente escândalo dos abusos sexuais de crianças, por parte de sacerdotes espalhados pelo mundo, na medida em que não apenas se presta a abusos de poder, em especial sobre os inocentes e mais fracos, mas sobretudo pelo encobrimento persistente que o papa tenta agora travar a todo o custo.

Mas tal sistema também impede a valorização da mulher nas estruturas do catolicismo, relegando-a para um lugar secundário, numa dissonância chocante com a vida e a sociedade, onde a discriminação de género se vai esbatendo das artes à cultura, da universidade às forças armadas e da governação às empresas, passando por todas as profissões, mas também nos outros sectores do cristianismo em todo o mundo. A tentativa de conceder um ministério às mulheres surge através da reorganização eclesial que se prepara para a assembleia especial do Sínodo dos Bispos sobre a Amazónia, que decorrerá em Outubro, e reunirá bispos do Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana Francesa, Guiana, Peru, Venezuela e Suriname, assim como “homens e mulheres pertencentes aos povos amazónicos”, que possam “transmitir os seus desejos e anseios mais profundos”, dentre os quais “identificar o tipo de ministério oficial que pode ser conferido às mulheres, tomando em conta o papel central que hoje desempenham na Igreja amazónica”.

O documento que sair da assembleia sinodal incluirá propostas a entregar ao Papa que, a partir daí, redigirá uma exortação apostólica, com orientações a seguir. Provavelmente poder-se-á vir a abrir a ordenação de mulheres ao diaconato, num primeiro momento, de modo a mostrar alguma abertura mas, simultaneamente, sem assustar os sectores mais conservadores, que nunca aceitariam o elemento feminino no sacerdócio, pois tal inovação quebraria o modelo milenar de uma Igreja no masculino.

A ideia que fica é que se pretende ir do local para o global, numa perspectiva mais atenta às necessidades da Igreja e aos problemas das populações, ao contrário do que é a tradição da cúria romana, que tende sempre a falar de Roma para o mundo. Ao focar a América Latina em especial e a Amazónia em particular, talvez a região do mundo onde o catolicismo mais terreno tem perdido para as igrejas evangélicas e os grupos neopentecostais, Francisco (que conhece bem a região) procura estancar essa sangria, mas também, a partir daí, ganhar força para impor uma reforma eclesial num tipo de governo imperial que subsiste no Vaticano.

Desde o início do seu pontificado o papa deu inúmeros sinais de desconformidade com a filosofia de poder dominante, ao não pernoitar nos aposentos papais, ao gostar de caminhar pelas ruas (“gosto muito de andar na rua, aprendo muito na rua”), ao admitir que é uma “pessoa” (dessacralizando assim a função) e até na fórmula calorosa e informal com que se dirigiu ao povo católico, desde a varanda da Praça de S. Pedro no dia da sua eleição. Todavia, não é tanto por isto que está sob fogo dos sectores ultramontanos, mas sim porque não esconde de ninguém o seu desejo de reformar a estrutura eclesial, coisa que o conservadorismo dominante não permitirá sem uma luta feroz.

Há quem não aprenda com as lições da História. No século XVI foi o que se viu, e a igreja católica acabou mesmo por ter de beliscar o seu absolutismo e fazer uma reforma sob pressão. Mas o preço que pagou pelo atraso foi muito alto.

José Brissos-Lino
Fonte: VISÃO online, 26/6/19